Por Daniel R. Poit*

A crise causada pela propagação da covid-19 disseminou, além do vírus, muitas outras crises.  Entre elas algumas silenciosas, que estão fora das manchetes da mídia. Uma destas crises é a do setor aéreo, um dos segmentos mais duramente atingidos desde o início da pandemia. O risco de contaminação pelo vírus afastou os passageiros das viagens aéreas quase que automaticamente, fazendo cair cerca de 90% a demanda por assentos tanto nos voos nacionais quanto nos internacionais. Esta realidade colocou o setor frente a problemas inéditos e diante da necessidade de rever, com urgência, uma série de ações, como a aquisição de novas aeronaves, seja para reposição ou expansão. Esta situação se apresenta ainda mais grave, quando muitas empresas aéreas pelo mundo não só cancelaram encomendas, como tentam devolver, suspender ou cancelar contratos de fornecimento de novos aviões.

Esse é o cenário que a Embraer enfrentou no início de 2020, vindo já combalida pelo resultado apresentado em seu balanço do exercício de 2019, quando reportou um prejuízo de R$ 1,29 bilhão. Na última semana, a empresa publicou um balanço informando um prejuízo líquido de 3,6 bilhões de reais em 2020. Estes resultados, se lidos apenas com estas cifras, podem ser interpretados como indicativo de que a empresa está em rota de colisão. Porém, se considerarmos que no último trimestre de 2020 o prejuízo – que é sempre um resultado negativo – foi de apenas 70 milhões de reais, valor inferior a um quinto do prejuízo ocorrido no mesmo período em 2019 (383 milhões de reais), pode ser indicador de que os planos de reestruturação estão surtindo efeito. Afinal melhorar em quase cinco vezes o resultado, reduzindo custos e com faturamento menor, é uma clara demonstração de competência gerencial e capacidade de adaptação. Neste momento, você pode estar com a pergunta pronta: ora, se há competência na gestão, por que houve todo este prejuízo nos dois últimos anos?

Para ajudar a responder, abri até um novo parágrafo!  Ao acompanharmos o desempenho da Embraer na década de 2009 a 2018, observamos uma sequência de resultados que orgulharia qualquer investidor, até mesmo o festejado Warren Buffet. Não tenho nenhum vínculo com a Embraer, sequer sou acionista. Mas, na qualidade de cidadão brasileiro, sou um admirador da empresa e do líder que a viabilizou: o comandante Ozires Silva. Quanto ao paradoxo da gestão, não podemos esquecer que a Embraer, a partir do final de 2017, foi exposta a uma desgastante negociação de um projeto de fusão com a Boeing, que a fez entrar em espera. Por exemplo: é como se uma aeronave estivesse na cabeceira da pista, aumentando a rotação das turbinas, mesmo enquanto ainda aguardava a informação de qual seria seu destino e tenha sido obrigada a ligar o reverso.

Fico imaginando o grau de preocupação de seus executivos, pressionados por acionistas, clientes, funcionários, governos e imprensa quando surgiu a notícia de que o acordo com a Boeing não prosperou.  Afinal, a empresa americana enfrentava seus próprios problemas e o governo dos Estados Unidos não iriam socorrer financeiramente sua principal fabricante de aviões com recursos para comprar uma empresa no hemisfério sul. A Boeing tinha lá suas próprias crises como os problemas com a nova versão do 777 e os maus resultados operacionais e mercadológicos dos modelos 737-Max.

Aposto que você está imaginando que ainda não respondi aquela pergunta. Entendo que é necessário antes contextualizar, para uma adequada interpretação da resposta. Sim, a Embraer se mostra vigorosa e competente. Está em um mercado de titãs, no qual compete com empresas sediadas em países com grande influência econômica e política em todo o planeta, conseguiu ser inovadora e oferecer ao mercado o que ele precisava: produtos robustos, adequadamente configurados e com elevado grau de confiabilidade, em quantidades e preços adequados e, ainda, cumprindo exemplarmente os prazos de entrega. Me atrevo afirmar que, certamente, o genial Peter Drucker reconheceria este desempenho empresarial. Afinal, ainda que os riscos devam ser medidos antecipadamente na elaboração dos planos de uma empresa com estas características, as questões que a afetam são externas e de difícil previsibilidade.

Ainda assim a Embraer tem se mostrado capaz de ajustar sua rota. O sistema capitalista não costuma perdoar a falta de resultado financeiro, mas entendo que a agilidade que a Embraer tem demonstrado a faz uma empresa atraente para quem quer ter orgulho de seus investimentos a longo prazo e os casos de sucesso no mundo capitalista globalizado, demonstram exatamente isto. Os resultados construídos com trabalho sério, eficiência tecnológica e agilidade competitiva tem premiado uma jovem geração de empresas que têm pagado generosos dividendos a seus acionistas.

Contudo, para que a Embraer possa continuar sua saga de sucesso, algumas adversidades poderiam ser mitigadas pelas autoridades brasileiras, pois é uma empresa reconhecida mundialmente como líder em seu segmento, atuando em um setor estratégico para o país. Enfrentar o fogo amigo de regulações obsoletas e ou descabidas de órgãos internos, crédito caro e em descompasso com as operações oferecidas ao setor em outros países, resistência das companhias aéreas conterrâneas em reconhecer as virtudes de seus produtos e um infindável rol de exigências, igualmente desalinhadas com as melhores práticas no mercado global, são desafios que uma empresa deste porte só supera com a competência de seus colaboradores.

Neste sentido, cabe aplaudir também o papel crucial que exerce o Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), na formação do corpo técnico e de pesquisadores, que permanentemente buscam inovar e incorporar as inovações nos produtos e processos da Embraer, assegurando, assim, a permanente renovação e flexibilidade que a empresa tem demonstrado em momentos difíceis.

Seria uma lamentável perda para o povo brasileiro acordar um dia e saber que uma das mais emblemáticas empresas do Brasil passou para o controle de alguma corporação de outro país.  Será uma boa compra para o investidor que o fizer.  Entretanto, mais que isso, será também outra vez o reverso ligado para as ambições daqueles que desejam um país autossuficiente, com uma dinâmica e inovadora indústria manufatureira, capaz de se manter protagonista no mercado global.

*Daniel R. Poit é economista, consultor e professor de planejamento, gestão de projetos e estratégia. Mestrado em Tecnologia e mestrando em Governança e Sustentabilidade no ISAE Escola de Negócios.