Dimas Ramalho
Imagine a cena, infelizmente comum em muitos lares brasileiros: um cidadão, após meses de espera por um benefício previdenciário ou uma resposta sobre um processo administrativo, recebe finalmente uma carta oficial. Ao abri-la, no entanto, a esperança ou a ansiedade dão lugar à confusão.
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Rebuscado, o texto traz palavras como “pleito”, “indefere-se”, “outrossim” ou “hipossuficiência” –e o destinatário, muitas vezes com escolaridade básica, fica sem entender nada. Nesse momento, o Estado não se comunicou, mas ergueu um muro. Aquilo que deveria ser um serviço público tornou-se um instrumento de exclusão.
Foi com o objetivo de demolir essa barreira linguística que o Congresso aprovou recentemente o Projeto de Lei 6256/19, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos da administração pública. À primeira vista, pode parecer uma medida meramente cosmética, uma simples diretriz de redação ou estilo.
Ledo engano. Trata-se, na verdade, de uma iniciativa fundamental de democratização do acesso aos direitos no Brasil contemporâneo. A nova legislação parte de uma premissa tão óbvia quanto revolucionária: não existe transparência pública se não houver compreensão por parte da população. O direito de entender é o pré-requisito para todos os outros direitos.

O Brasil é um país marcado por abismos sociais profundos, e a linguagem burocrática tem servido historicamente como uma ferramenta de manutenção dessas distâncias. Existe uma cultura enraizada no serviço público e no sistema de justiça de que a complexidade do texto é sinônimo de erudição, competência técnica e autoridade.
Criou-se um dialeto próprio, muitas vezes apelidado de “juridiquês” ou “burocratês”, que acaba funcionando como um código de acesso restrito –e quem não o domina, torna-se refém de intermediários ou acaba desistindo de perseguir o que lhe é de direito.
A Lei da Linguagem Simples chega para inverter essa lógica perversa. Ao obrigar órgãos federais, estaduais e municipais a se comunicarem de forma direta e acessível, o Estado brasileiro admite que a responsabilidade pela compreensão da mensagem é do emissor, não do receptor.
É importante deixar claro que a adoção da Linguagem Simples — internacionalmente conhecida como “Plain Language” — não é uma proposta de empobrecimento do idioma ou de infantilização do público. Pelo contrário, trata-se do desafio intelectual de depurar a informação até que ela revele sua essência sem ruídos. É uma técnica de comunicação sofisticada que coloca o leitor no centro do processo, garantindo que a senhora na fila do INSS e o grande empresário tenham o mesmo acesso inequívoco aos seus direitos e deveres.
O impacto dessa mudança transcende a esfera dos direitos individuais e toca o coração da eficiência econômica e administrativa. A falta de clareza custa caro. Textos prolixos geram erros no preenchimento de formulários, aumentam as filas de atendimento presencial de pessoas que buscam apenas explicações sobre o que está escrito, e abarrotam o Judiciário e as ouvidorias com demandas que poderiam ter sido resolvidas na origem.
A incompreensão gera retrabalho para a máquina pública e perda de tempo para a sociedade. Em governos digitais, onde o autoatendimento é a meta, a linguagem simples é a infraestrutura básica. Não adianta ter um aplicativo ou site governamental moderno se o texto contido nele é analógico e incompreensível.
No entanto, a aprovação da lei é apenas o primeiro passo de uma longa jornada. O verdadeiro desafio será a mudança cultural dentro das repartições. Nossas faculdades passaram décadas ensinando que escrever difícil é escrever bem. Muitos servidores ainda acreditam que a simplicidade retira a solenidade do ato administrativo.
Será necessário um esforço massivo de capacitação e, principalmente, de mudança de mentalidade para que a técnica seja aplicada não como uma obrigação burocrática a mais, mas como um valor ético do serviço público. A clareza deve ser vista como um ato de empatia e respeito ao tempo e à dignidade do outro.
Num país onde a informação é um recurso valioso e muitas vezes escasso, democratizar a linguagem é democratizar o poder. Ao traduzir o Estado para a língua do povo, fortalecemos o tecido democrático e reduzimos a desigualdade no acesso à justiça e aos serviços essenciais. Afinal, uma República que se preze deve falar a língua de todos, para que todos possam, de fato, fazer parte da República.
Dimas Ramalho é vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
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