Reportagem recente do jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia 3 de março, revela que existem pelo menos 72 facções criminosas nas prisões brasileiras. O número é estarrecedor e não se trata de exagero jornalístico, mas resultado de mapeamento sigiloso feito pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ao qual o órgão de imprensa teve acesso.
Não é de hoje que o cidadão brasileiro ouve falar do poder das facções. Entretanto, quase sempre as notícias se referem ao Primeiro Comando da Capital (PCC), nascida em São Paulo, e ao Comando Vermelho (CV), originado no Rio de Janeiro. A reportagem, portanto, escancara a caótica situação dos presídios e da segurança pública no Brasil, graças à proliferação e diversificação das facções, presentes nos estabelecimentos penais das 27 unidades da Federação.
Segundo especialistas, membros desses grupos transformaram os presídios em verdadeiros “escritórios do crime”, comandando de suas celas as mais variadas práticas contra a lei. Muitos de seus líderes estão no sistema prisional, alguns em presídios de segurança máxima, porém há uma legião deles nas ruas, cometendo crimes contra o patrimônio, contra agentes do Estado e promovendo resgate de presos. Os que estão encarcerados comandam motins e determinam ou autorizam assassinatos.
As facções se profissionalizaram ao longo do tempo. Possuem hierarquia definida, estatuto, poder financeiro garantido pela prática de crimes como roubos e tráfico de drogas, e contam com a assistência jurídica de advogados criminalistas. Já possuem inclusive ramificações em alguns países da América do Sul.
Esse poder paralelo nasceu, cresceu e se solidificou aproveitando-se da deterioração do sistema prisional. O país tem atualmente 644.794 pessoas encarceradas e outras 190.098 em prisão domiciliar. No total, são 834.874 presos. Esse número faz do Brasil o terceiro país com maior número de encarcerados, atrás somente dos Estados Unidos (2,2 milhões de presos) e da China (1,7 milhão).
Quase a metade (44,5%) da população atrás das grades no Brasil é formada por presos provisórios, encarcerados sem que tenham sido submetidos a julgamento e que estão “matriculados” nas escolas especializadas em crime, instaladas dentro das celas, atrás das grades.
A população carcerária é composta por 43% de jovens de até 29 anos e por 61,7% de pardos e pretos. Dos encarcerados, 67% são analfabetos ou semianalfabetos, com ensino fundamental incompleto. Não é difícil, portanto, perceber como a questão da educação impacta nos níveis de criminalidade.
Trata-se de um sistema punitivo cujo custo é muito alto para os governos. Nos presídios estaduais, cada preso custa R$ 2.400,00 por mês, o correspondente a 1,70 salário-mínimo por mês. Nos presídios federais, a despesa por encarcerado é ainda maior: R$ 4.177,00 mensais – quase 3 salários-mínimos.
Além de oneroso, o sistema carcerário é falho em vários aspectos. O índice de ressocialização dos detentos é mínimo, ao contrário dos casos de reincidência. Há outro aspecto importante. Nos últimos 10 anos, cerca de 17 mil mortes foram registradas nos presídios. Hoje, em média, mais de cinco detentos morrem todos os dias nas cadeias e penitenciárias. Muitos deles vítimas das guerras entre facções, fenômeno que também causa a morte de inocentes nas ruas, atingidos por balas perdidas nos frequentes tiroteios decorrentes notadamente pela disputa por pontos de venda de drogas.
Como o Estado não é capaz de diminuir a incidência de crimes, o déficit de vagas no sistema carcerário só aumenta e atualmente é de 167 mil vagas. E poderia ser muito maior. Estudo do Instituto Sou da Paz realizado em 2019 revelou que apenas 37% dos homicídios cometidos no país são esclarecidos. Além disso, há no Brasil 269.592 mandados de prisão aguardando cumprimento, segundo o último levantamento do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A deficiência de vagas e o alto custo por preso significa que os governos precisarão destinar mais e mais recursos para a manutenção dessa população improdutiva e crescente.
A violência urbana aparece em todas as pesquisas de opinião como uma das principais preocupações do cidadão. E isso não é à toa. Embora tenha apenas 2,55% da população mundial, o Brasil registra 10,4% dos homicídios praticados no mundo. Em valores absolutos, segundo estudo global divulgado em dezembro de 2023, o Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo nesse tipo de crime. Uma liderança vergonhosa.
Em 2023, foram registrados 47.847 homicídios, a maioria (40.464) intencional. Para efeito de comparação, esse número de vítimas de homicídio corresponde a toda a população de Cabreúva (SP) ou de Santana do Ipanema (AL).
A violência também se manifesta no trânsito. O Brasil é o quarto país do mundo com maior número de mortes causadas por acidentes de trânsito. Entretanto, os três piores nesse triste ranking possuem populações muitos maiores: Nigéria (227 milhões de habitantes), China (1,39 bilhão) e Índia (1,42 bilhão).
Temos, portanto, várias guerras internas, altamente letais, até hoje não encaradas como prioridade pelos governos. É evidente que as políticas públicas, a legislação penal e o combate ao crime têm sido muito malsucedidos. O país perde para a violência quase 100 mil brasileiros a cada ano e, estranhamente, ninguém clama por um cessar-fogo, a não ser as mães e os pais desesperados com a morte dos filhos.
Em busca de protagonismo nas guerras externas, o governo federal se coloca apenas coadjuvante nas guerras internas, aquelas cuja vitória mais interessa à população brasileira porque é ela quem sente seus efeitos todos os dias.
Se não houver uma mudança radical de postura nesse sentido, se o país não agir em unidade nacional para que o problema seja enfrentado como prioridade, corremos o risco de as 72 facções criminosas mapeadas pela reportagem crescerem e se fortalecerem ainda mais, até um ponto em que se tornará impossível deter o controle do crime no país. Basta observar que o Brasil já tem vizinhos de fronteira que podem ser qualificados de países produtores de drogas e expoentes do tráfico (narco-países)
Os reflexos da situação atual são indisfarçáveis e acenderam o sinal de alerta. Segundo a mesma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, para proteger vidas e patrimônios as empresas privadas e as pessoas físicas brasileiras despendem anualmente recursos próprios correspondentes a 1,7% do Produto Interno Bruto (R$185 bilhões/ano) para suprir o fracasso da ação do Estado no combate à violência interna. É muita coisa, especialmente em um país com carga tributária entre as maiores do mundo.
É preciso, portanto, maior atenção com a questão, grave e urgente, especialmente quando o país se aproxima de nações com histórico de organizações terroristas – China, Irã, Venezuela, Rússia, Cuba e Nicarágua entre elas -, em claro contraste com o perfil da população nacional, que ama a liberdade, seja de escolha política, de expressão, ou econômica. O brasileiro, já tão sofrido, merece viver em paz.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.