O Superior Tribunal de Justiça (STJ) noticiou, sem muito alarde,

no último dia 6 de outubro, importante decisão proferida pela Terceira Seção, que definiu que o interrogatório do réu é o último ato da instrução criminal, apontando que a possibilidade de inversão da ordem prevista no artigo 400 do Código de Processo Penal (CPP) diz respeito apenas à oitiva das testemunhas, porém deixou plantado o “ovo da serpente”, uma vez que condicionou, perigosamente, o reconhecimento da nulidade decorrente de uma indevida inversão, ao exigir demonstração do prejuízo para a defesa. Além disso, a defesa deve arguir no momento oportuno, sob pena de preclusão. 

O relator do recurso (Recurso Especial nº 1.946.472/PR), ministro Messod Azulay Neto, firmou entendimento, no que foi acompanhado pela maioria dos Ministro que compõe a Terceira Seção, no sentido de “o interrogatório é o ato final da instrução, presumindo-se a sua nulidade, eis que viola o princípio do devido processo legal, ficando autorizada somente a inversão da ordem exclusivamente para a oitiva das testemunhas de acusação e de defesa“, no entanto, deixou assente que a presunção é relativa, ao afirmar, repita-se, perigosamente, que “a defesa deve arguir no momento oportuno, sob pena de preclusão, incumbindo-lhe ainda apontar o prejuízo sofrido“. 

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STJ e o "ovo da serpente", por Marcelo Aith

Em relação a presunção relativa de nulidade, o ministro relator destacou: “Sob outro enfoque, ao réu incumbe arguir a nulidade na própria audiência ou no primeiro momento oportuno, salvo situação extraordinária em que deverá argumentar a excepcionalidade no primeiro momento em que tiver conhecimento da inversão da ordem em questão. Cabe também à defesa a demonstração do prejuízo concreto sofrido pelo réu, uma vez que se extrai do ordenamento, a regra geral segundo a qual, as nulidades devem ser apontadas tão logo se tome conhecimento delas, ou no momento legalmente previsto, sob pena de preclusão, conforme dispõe o art. 572 e incisos, do CPP“. 

Com efeito, o “ovo da serpente”, o “prenúncio do mal” decorre de forma inequívoca da decisão da Terceira Seção, explica-se. Ao exigir que a defesa demonstre o prejuízo concreto, a Terceira Seção atribuiu aos juízes um poder supremo, na medida em que, invariavelmente, são eles que irão decidir se houve ou não prejuízo. Lançarão nos autos que não vislumbro prejuízo, haja vista que são eles os destinatários finais das provas e os depoimentos das testemunhas e os interrogatórios dos réus na mais são do que provas orais. 

Em verdade, a Terceira Seção reconheceu a importância do interrogatório com uma mão, ao determinar a impossibilidade da inversão, mas retirou com a outra, ao consignar que eventual inversão indevida deve ser arguida pela defesa e demonstrado o prejuízo concreto. Ora, o que seria o prejuízo concreto para os eminente Ministros da Terceira Seção? O prejuízo concreto para um magistrado e o mesmo em relação ao outro?  

Não se pode olvidar que o interrogatório somente será um ato pleno de defesa, na medida em que o réu tenha acesso, antecipadamente, a todas as provas produzidas, independentemente do teor de eventual depoimento prestado por uma testemunha ouvida por carta precatória, ou seja, mesmo que nada acrescente ao conteúdo da acusação. O contraditório e a ampla defesa, são direito fundamentais salvaguardados como cláusulas pétreas na Constituição Federal, constante deste a sua gestação, durante constituinte. 

A decisão da Terceira Seção, subliminarmente, relativiza esses direitos fundamentais, condicionando a sua aplicação a demonstração de eventual prejuízo concreto. Daqui a pouco o Superior Tribunal de Justiça pode flexibilizar outros atos processuais, como a apresentação da resposta a acusação ou as alegações finais (memoriais escritos), ao argumento de que a defesa não logrou demonstrar que as suas apresentações, a tempo e modo, poderiam modificar o panorama processual. 

Ao ler o voto do Eminente Relator, não consigo deixar de me lembrar do poema de Eduardo Alves da Costa, intitulado “No Caminho, com Maiakóvski”, o qual trago o trecho mais conhecido, dessa belíssima obra, símbolo da luta contra a ditadura militar: 

“Na primeira noite eles se aproximam 

e roubam uma flor 

do nosso jardim. 

E não dizemos nada. 

Na segunda noite, já não se escondem; 

pisam as flores, 

matam nosso cão, 

e não dizemos nada. 

Até que um dia, 

o mais frágil deles 

entra sozinho em nossa casa, 

rouba-nos a luz, e, 

conhecendo nosso medo, 

arranca-nos a voz da garganta. 

E já não podemos dizer nada. (…)” 

 

Acredito que o antídoto ao veneno da serpente que está sendo gestada no ovo, pode ser extraído dos julgados do Supremo Tribunal Federal, como a decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, no HC n° 176.332/SP, a qual determinou a realização de novo interrogatório, como último ato de instrução, sem condicionar a demonstração do prejuízo concreto, lançado pela Terceira Seção do STJ, in verbis: “O direito de falar por último está contido no exercício pleno da ampla defesa englobando a possibilidade de refutar TODAS, absolutamente TODAS as informações, alegações, depoimentos, insinuações, provas e indícios em geral que possam, direta ou indiretamente, influenciar e fundamentar uma futura condenação penal“. Moraes segue afirmando que o “devido processo legal, ampla defesa e contraditório, portanto, exigem que o réu se manifeste após ter o pleno conhecimento de toda a atividade probatória realizada durante o processo, podendo contraditar todos os argumentos trazidos nos autos” e concluiu destacando que o “réu tem o direito de examinar cada um dos fatos que lhe são imputados, assim como as provas que os amparam, e também o direito de contestar, posteriormente, seu inteiro teor; ou seja, o “direito de falar por último”“. 

Tal como nos alerta Eduardo Alves da Costa, não podemos deixar que os Tribunais assumam as vezes de constituintes originários e ponham a abaixo direitos fundamentais dos réus. Para além de fundamentais, são direitos protegidos contra toda e qualquer manobra tendente a aboli-lo. Oxalá que os advogados criminalistas lutem para que essa decisão, proferida pelo rito de recursos repetitivos, que reverberará para todos os tribunais de instância inferior, seja aniquilada por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, ou, do contrário, estaremos no mesmo caminho de Maiakóvski. 

*Marcelo Aith é advogado, latin legum magister (LL.M) em direito penal econômico pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa), especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca (ESP), mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim-SP

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