da Reuters- Pouco menos de dez meses depois de registrar oficialmente sua primeira morte por covid-19, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (07/01) a marca de 200 mil óbitos pela doença. Foram mais 1.524 mortes registradas nas últimas 24 horas, elevando o total para 200.498, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). No mesmo dia, o país ainda se aproximou da marca de 8 milhões de casos, com o registro de 87.843 novas infecções, um novo recorde diário.
No entanto, especialistas alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação. O ex-ministro da Saúde Nelson Teich, por exemplo, estimou em 25 de dezembro, considerando a subnotificação, que o país já havia alcançado a marca de 230 mil mortes.
Na ocasião, Teich afirmou que a atual pandemia é a pior que o Brasil já viveu, mais grave até que a gripe espanhola de 1918-1920, que matou 35 mil brasileiros à época, numa população de pouco mais de 30,6 milhões. Seguindo o ritmo atual de contágio, o país deve passar em poucas semanas a proporção de mortes causada pela gripe espanhola.
A primeira morte oficial associada à covid-19 ocorreu em São Paulo em 12 de março. Envolveu uma mulher de 57 anos. Desde então, é como se praticamente toda a população de Angra dos Reis (RJ) tivesse desaparecido. O número superou até a previsão mais pessimista do Ministério da Saúde realizada em abril, quando a pasta ainda era comandada por Luiz Henrique Mandetta, que projetava entre 80 mil e 180 mil mortos durante a pandemia.
Foi preciso cerca de seis meses para o Brasil ultrapassar a marca de 100 mil mortes. E apenas quatro meses para o número dobrar. Após uma estabilização e até uma redução no número de mortes entre outubro e novembro, o ritmo voltou a se acelerar em dezembro, com o país voltando a observar registros superiores a mil mortes em 24 horas. Na mesma época, o país registrou um novo recorde diário de novos casos, passando a marca de 70 mil em um único dia – cifra que foi superada nesta quinta-feira. O número de casos totais mais que dobrou desde o ínicio de agosto.
Apenas um país acumula mais mortes do que o Brasil: os Estados Unidos, que já registaram mais de 360 mil óbitos. No entanto, ao contrário dos EUA, o Brasil permanece atrás na principal iniciativa para pôr um fim à pandemia: a vacinação. Enquanto mais de 40 nações já iniciaram esforços para imunizar suas populações, o Brasil ainda segue com um plano vago de imunização, ficando atrás até mesmo de outros países latino-americanos.
Além dos problemas de planejamento, o próprio presidente Jair Bolsonaro tem alimentado paranoia sobre os imunizantes, num sinal desanimador de que uma das maiores tragédias sanitárias da história do país ainda não tem um fim à vista. Nos últimos dias, o Brasil vem passando por uma espécie de déjà vu dos piores momentos da pandemia em 2020, como nova superlotação de hospitais em Manaus e contratação de leitos emergenciais na rede privada em São Paulo e Rio de Janeiro.
E as próximas semanas não indicam um arrefecimento. Uma nova variante do vírus mais infecciosa identificada no Reino Unido já foi detectada no país. E desde o final do primeiro semestre de 2020 são comuns cenas nas grandes cidades brasileiras que mostram estabelecimentos lotados, com pessoas ignorando regras de distanciamento. Cenas que se repetiram com força país afora no fim do ano.
Há muito governos e prefeituras sucumbiram à pressão para não impor novas medidas impopulares de distanciamento, num sinal de que o presidente venceu a disputa travada com autoridades municipais e estaduais para manter o comércio aberto, como se o país não estivesse enfrentando uma pandemia.
O exemplo de Bolsonaro
Marcas trágicas como a registrada nesta quinta-feira sequer são destacadas pelo governo de Jair Bolsonaro. Em maio, o Ministério da Saúde deixou de publicar nas redes sociais os boletins diários. O último foi publicado um dia antes de o país superar pela primeira vez a marca de mil mortes em 24 horas. As coletivas da pasta se tornaram uma raridade.
O que restou de uma posição oficial do governo sobre o avanço da pandemia ocorre em falas do presidente. Praticamente todas têm o objetivo de minimizar a doença e incentivar a população a seguir normalmente com a vida. Na última terça-feira (05/01), por exemplo, dois dias antes da marca de 200 mil mortos ter sido cruzada, Bolsonaro afirmou que “o vírus é potencializado pela mídia sem caráter que nós temos”.
O comportamento seguiu a mesma linha adotada pelo presidente desde o início da pandemia. Nos dez meses posteriores à primeira morte por covid-19 no Brasil, Bolsonaro alternou minimização do perigo, negação, indiferença, zombaria, desprezo, sabotagem das medidas de isolamento social, transferência de responsabilidade e disseminação de notícias falsas. Na reta final do ano, passou também a alimentar paranoia sobre vacinas.
No início de março, quando o país acumulava oficialmente 210 casos de covid-19 e uma morte, ele chamou a doença de “histeria” e anunciou que realizaria uma festa de aniversário. No dia 22 do mesmo mês, ele disse que o número de mortes por coronavírus no Brasil não ultrapassaria os 800 óbitos da gripe H1N1 em 2019, mesmo com a covid-19 já vitimando mais de 600 pessoas por dia na Itália. Na mesma semana, chamou a covid-19 de “gripezinha”.
Em agosto, quando o número de mortes se aproximava de 100 mil, disse: “Vamos tocar a vida e se safar desse problema”. No mesmo mês, o presidente, que sabotou deliberadamente esforços de distanciamento social, disse que a “eficácia da máscara é quase nenhuma”. Na última segunda-feira, o presidente voltou a zombar das recomendações do uso de máscara quando aproveitava suas férias no litoral paulista, onde incentivou aglomerações. “Mergulhei de máscara também, para não pegar covid nos peixinhos”, disse.
Essa zombaria e desrespeito às normas de distanciamento social para conter a pandemia se transformou nos últimos meses num comportamento a ser seguido pelos seus apoiadores, como uma marca de distinção. “O Brasil tem que deixar de ser um país de maricas”, disse em novembro. “Todos nós vamos morrer um dia”, completou. “Tem medo do quê?”, já havia dito o presidente no final de julho, quando as mortes passavam de 92 mil.
Seguindo o exemplo de Bolsonaro, deputados alinhados com o presidente passaram a pregar a desobediência ao uso de máscaras e a espalhar mentiras de que os acessórios é que estavam fazendo as pessoas adoecerem.
Em dezembro, quando a doença já mostrava ter voltado com força, foi a vez de o presidente voltar ao estágio da negação, afirmando que o país vivia um “finalzinho de pandemia”.
Um ministério sem rumo
Mas a visão do presidente sobre a pandemia não se refletiu apenas no exemplo pessoal. Foi transformada em política pública. Na prática, Bolsonaro é o ministro da Saúde desde maio, após a saída de Nelson Teich. Tanto Teich quanto seu antecessor, Mandetta, saíram ou foram forçados a sair pelo presidente por não concordarem com a sabotagem das medidas de distanciamento ou com a promoção das “curas” duvidosas de Bolsonaro, como a hidroxicloroquina.
Para tocar o dia a dia da pasta, Bolsonaro colocou um general sem nenhuma experiência na área, Eduardo Pazuello. O militar disse que, antes de assumir o cargo, “nem sabia o que era o SUS”. Na gestão Pazuello-Bolsonaro o ministério abandonou qualquer esforço de coordenação com os estados, deixou de lado a política de distanciamento, expandiu o uso da droga favorita de Bolsonaro e não fez esforços para aumentar a testagem. A doença seguiu um curso natural no país, sem obstáculos.
Com Pazuello no comando, as mortes explodiram no país. Eram 14.817 quando o general assumiu. Mas a pasta demonstrou ao longo dessa gestão que suas prioridades eram outras. Em junho, o ministério tentou esconder os números da pandemia, mas foi forçado a voltar atrás por ordem do Supremo. Entre agosto e setembro, quando mortes passavam de 100 mil, a pasta direcionou esforços para tentar dificultar o aborto legal no Brasil.