Os repórteres que cobrem o Congresso Nacional chegaram à sede do Poder Legislativo na manhã desta terça-feira (06/11) preparados para um dia atípico de trabalho. Pela primeira vez em anos, jornalistas credenciados não teriam acesso ao plenário da Câmara, onde estava prevista uma sessão especial para comemorar os 30 anos de promulgação da Constituição de 1988.
A decisão de restringir o acesso da imprensa veio da equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro, que participaria da sessão e não desejava dividir o espaço com os jornalistas por questões de segurança, de acordo com o comunicado oficial de sua equipe.
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O desejo do capitão reformado, desta vez, não virou ordem. Ainda pela manhã repórteres e integrantes da equipe do novo presidente da República foram surpreendidos pela informação de que o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), decidira que o plenário, como sempre, estaria aberto para os repórteres.
“Eu não me lembro de algo assim, seria inédito e muito simbólico”, diz um jornalista que cobre o Congresso há alguns anos para um grande jornal brasileiro. “Nem na sessão do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, talvez o momento mais delicado da República nas últimas duas décadas, houve restrição. Não faria sentido haver agora.”
A liberação dos jornalistas ao plenário da Câmara na primeira visita de Bolsonaro ao Congresso depois de eleito foi uma das primeiras demonstrações institucionais claras de que a guerra que o capitão reformado declarou à imprensa tende a não ser tão simples de vencer quanto ele parecia imaginar.
Ao longo de sua campanha, Bolsonaro adotou uma estratégia semelhante à do presidente americano, Donald Trump, ao estabelecer um canal direto de comunicação com seus eleitores e criticar a imprensa de forma feroz ao ver reportagens que o desagradavam.
A expectativa era de que após a vitória nas urnas, Bolsonaro adotasse tom menos raivoso e buscasse, de alguma forma, apoio dos meios de comunicação para as medidas econômicas duras que terá de implementar no início de seu governo para ajustar as contas públicas do país.
Mas o que se deu foi o inverso. Em uma de suas primeiras entrevistas após a eleição, ele atacou diretamente o jornal Folha de S. Paulo e, de forma explícita, ameaçou cortar verbas de publicidade estatais para veículos que não se encaixem em seu filtro de seriedade e qualidade.
“Por si só esse jornal se acabou”, disse ele em entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo. “No que depender de mim, imprensa que se comportar de maneira indigna não terá recursos do governo federal.”
O ataque direto à Folha e a ameaça de uso da máquina estatal para calar os críticos ampliou de forma substancial as preocupações com a garantia de liberdade de expressão no próximo governo.
Em visita ao Brasil nesta semana, o relator especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza, disse estar extremamente preocupado com as declarações de Bolsonaro e afirmou temer que elas possam incentivar mais ataques a jornalistas no país.
“O Brasil já tem uma realidade complexa, de alta vulnerabilidade para os jornalistas, com ataques e assassinatos. Nosso temor é que essa realidade se agrave”, disse Lanza à DW Brasil.
Os ataques e ameaças pós-eleição também surpreenderam a Folha, que já vinha sendo alvo de Bolsonaro e de seus seguidores ao longo da campanha. “Bolsonaro teve uma retórica extremamente agressiva durante a campanha. Mas pensamos que, uma vez eleito, fosse adotar outra postura, a de chefe de Estado”, afirmou o editor-executivo do jornal, Sérgio Dávila.
Dependência de verbas estatais
Para especialistas, as ameaças de Bolsonaro de cortar as verbas publicitárias impressionam, mas não devem ter um impacto tão grande em veículos de comunicação de grande porte, como a Folha de S. Paulo, os veículos do Grupo Globo e seus concorrentes mais diretos, como o jornal O Estado de S. Paulo, ou as revistas ??poca e Veja, por exemplo.
“Esses veículos não são tão dependentes das verbas estatais, eles conseguem sobreviver com os anúncios privados, as vendas e seus leitores, ainda que enfrentando dificuldades”, afirma Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “A grande questão são os veículos regionais, que têm uma dependência profunda da propaganda estatal, em suas mais diferentes esferas e meios.”
Bucci tem acompanhado de perto a evolução dos problemas econômicos da imprensa no Brasil e chegou a uma conclusão pouco animadora: há tão pouca transparência na divulgação de dados estatais que é praticamente impossível saber quanto o governo investe nos meios de comunicação como um todo, em todo o país, e qual seu poder de pressão econômica sobre a linha editorial.
“Os números não são abertos, nem por parte dos anunciantes do Estado como um todo nem por parte dos veículos”, diz. “Mas o que podemos afirmar com alguma tranquilidade é que todos os indicativos mostram que a estrutura estatal ??? incluindo governo federal, estados, municípios e empresas do Estado ??? é a maior anunciante do país.”
Em meio a uma crise sistêmica no setor de comunicação, esse é um poder e tanto para um governante em guerra com a imprensa. “Essa é uma diferença importante em relação à democracia americana, onde o Estado não tem tanta influência econômica sobre os meios de comunicação como aqui”, pontua Bucci.
?? exatamente na imprensa menor, mais interiorizada e dependente do Estado que a presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo Projor, Angela Pimenta, imagina que as pressões tendem a crescer durante o governo de um presidente eleito que tem se mostrado avesso às críticas.
“As ameaças à Folha e aos repórteres são preocupantes, mas o meu maior temor é em relação aos jornalistas de fora dos grandes veículos, das periferias, das cidades pequenas”, diz ela, que dirige o primeiro instituto criado para acompanhar a imprensa no Brasil e fundado pelo falecido jornalista Alberto Dines. “Onde as instituições não são fortes, a tendência é de um agravamento de uma situação que já é muito complicada no Brasil.”
Ataques a jornalistas
Números da ONG Repórteres Sem Fronteiras mostram que o Brasil é o segundo país que mais matou jornalistas na América Latina nesta década. Ao longo dos últimos sete anos, 26 profissionais de imprensa perderam suas vidas por conta de sua profissão. Nesse período, houve mais mortes apenas no México, com 65 assassinatos de profissionais de imprensa.
“Da parte do governo, esperamos um ambiente de respeito ao papel da imprensa, para que o Brasil não seja nivelado internacionalmente a países com regimes opressivos onde jornalistas correm riscos ao fazer seu trabalho de forma crítica e independente”, diz Daniel Bramatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Ao longo dos últimos anos, a Abraji tem se dedicado a acompanhar os casos de violência contra jornalistas brasileiros. Só neste ano, a associação contabilizou 71 agressões físicas contra repórteres envolvendo as eleições, em situações de claro cunho político. Houve ainda um aumento exponencial dos ataques virtuais. Ao menos 86 jornalistas foram atacados nas redes ao longo deste ano.
“E isso não ocorreu apenas por parte de apoiadores de um ou outro candidato. Por isso, temos reforçado que cabe aos líderes de partidos e aos políticos eleitos desautorizar esses ataques, em vez de incitá-los”, diz Bramatti.
Os ataques virtuais se tornaram tão comuns que a Abraji decidiu criar uma cartilha para que jornalistas possam aprender a se proteger e, eventualmente, preparar-se para os ataques virtuais.
Redes sociais
Exatamente nas redes sociais foram travados recentemente os ataques mais incisivos contra a imprensa tradicional. Os resultados desse embate têm sido cada vez menos animadores para os veículos de comunicação que fazem o chamado jornalismo profissional.
Um estudo coordenado pelo filósofo e professor de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado mostra que o impacto dos meios de comunicação tradicionais nas redes sociais é da mesma dimensão da chamada mídia alternativa, seja ela de direita ou de esquerda.
“Essa é uma questão interessante e que me leva a perguntar se a imprensa tradicional no Brasil vai passar por um movimento de polarização como está acontecendo nos Estados Unidos, com veículos apoiando abertamente Trump e outros se colocando de forma extremamente crítica”, diz.
Ortellado afirma que ainda é cedo para chegar a essa conclusão, mas acha que alguns sinais de que isso possa ocorrer já começam a surgir. “Ainda vai depender dos movimentos dele como presidente, mas acho muito possível que parte da imprensa seja empurrada para a esquerda, como a gente vê o New York Times e a CNN hoje nos EUA.”
Apesar de achar que ainda é cedo para saber se, de fato, o Brasil replicará os Estados Unidos nesse sentido, ao menos uma característica Ortellado crê que se repetirá no país. “[Assim como Trump], Bolsonaro não usará mais a imprensa como intermediária. Ele não vai sair das redes e vai se comunicar diretamente com o povo.”