Ponto um: o Estado nas democracias ocidentais foi surpreendido pelo Covid-19 e, com exceção de uma ou outra Nação, tem se mostrado incapaz de dar respostas mais urgentes à pandemia. O Estado liberal e o Estado do bem-estar social estão no banco dos réus. Ponto dois: a China, que teria sido o nascedouro do vírus, deu respostas mais eficazes ao massacre pandêmico, em função da rigidez das ordens emanadas pelo poder central – o partido comunista -, e acatadas pela população. O Estado-autoritário, até o momento, está na vanguarda dos feitos positivos da guerra.
Ante esse quadro, levanta-se a questão: nesses tempos de incerteza e medo, o Estado forte é mais apropriado para enfrentar as crises que o Estado liberal democrático?
Essa questão é relevante. Como é sabido, temos à frente da economia um perfil comprometido com o Estado liberal, o ministro Paulo Guedes, que prega deixar sob a esfera estatal apenas obrigações em áreas como educação, segurança pública e saúde. Centenas de empresas que contam com a participação do Estado deverão passar à iniciativa privada, existindo para tanto até uma Secretaria Especial.
Aqui e alhures, porém, discute-se a ideia de dar mais força ao Estado para que possa resolver situações críticas e vitais como epidemias, pandemias, enfim, os desafios de um mundo em plena transformação.
Seria o caso de se imitar a China? Não. O que se vê ali é um capitalismo de Estado, forjado para alavancar os potenciais do país e torná-lo uma potência econômica, se possível a primeira do mundo. A par da alavanca da economia, a China é um Estado autoritário, que sufoca as liberdades individuais e sociais, materializadas na censura ao pensamento, à livre expressão e associação – criação de partidos políticos, por exemplo -, valores incompatíveis com os direitos humanos.
Não é, portanto, espelho para a democracia. Por outro lado, as nações democráticas dão passos, mesmo pequenos, nos caminhos do revigoramento de suas obrigações. Nas crises, o papel do Estado se avoluma, como temos observado nesse ciclo do Covid-19.
Um dos papas da ciência política, o sociólogo francês Alain Touraine, prega o aumento da capacidade de intervenção do Estado como forma de uma nação atenuar as desigualdades. Nos moldes em que atua hoje, o Estado tem sido fraco para debelar mazelas.
Essa é a razão pela qual os governos agem no varejo, trabalhando no curto prazo, sem planejamento e com presidentes, como Jair Bolsonaro, envolto em profunda crise política, trocando ministros, anunciando remédios salvadores antes do atestado da ciência, tentando fazer agrados às bases e angariar apoio para operar a administração.
Mas Estado forte, por aqui, tem sido sinônimo de autoritarismo, arbitrariedade, estrutura burocrática gigante e ineficiente, corporativismo etc. Donde emerge a questão: como encolher o Estado de sua estrutura paquidérmica, dando-lhe capacidade de planejar a longo prazo, sem reformas capazes de deflagrar novos costumes e consolidar as instituições?
Respostas óbvias: realizando as reformas necessárias para otimizar a gestão, nos moldes da trabalhista e da Previdência. Importa avançar com um amplo leque de mudanças.
Com esse escopo, é possível juntar no mesmo balaio os eixos do Estado liberal, do Estado do bem-estar social e do Estado que intervém no mercado quando necessário, maior institucionalização política, racionalidade administrativa, eliminação progressiva do corporativismo, mudança da política de clientelas, adoção da meritocracia, revigoramento dos partidos.
?? evidente que essa meta, por nossas plagas, só será alcançada quando as tensões entre os três Poderes forem amainadas com estrita obediência aos trâmites constitucionais, a independência e a harmonia entre eles. Trata-se de um desafio que ultrapassará décadas. Os governos, sem exceção, têm pregado essa cartilha. Mas encontram obstáculos para cumpri-la.
Reformar o Estado não é tarefa para um só governo. O reformador tem inimigos na velha ordem, que se sentem ameaçados pela perda de privilégios, e defensores tímidos na nova ordem, temerosos que as coisas não deem certo.
Sobram indagações: em quanto tempo o país voltará a respirar com seus pulmões sadios? Como aparar desigualdades com programas que dão vazão a climas concorrenciais? Como resgatar a economia nesses tempos turbulentos? Como chamar de volta os investimentos quando o fantasma da recessão joga o país no fundo do poço?
Ante a atual paisagem, que tipo de Estado mais condiz com nossa democracia?
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato