Quando falamos que o processo de criação de marca mudou, e que agora precisamos trabalhar mais o diálogo com a comunidade, muita gente não entende exatamente o que isso significa. A maioria imagina algo literal, onde a marca responde aos consumidores nas redes sociais ou cria avatares para interagir “humanamente”, um a um, com seus consumidores. Mas a ideia do diálogo com a comunidade não é exatamente essa.
Esse diálogo é um fluxo contínuo de informações em que a empresa deve ter a capacidade de ouvir, e a flexibilidade e agilidade de responder rapidamente às influências do mercado. Portanto, não é que a comunidade da marca fala ou responde diretamente à marca. Ela apenas fala, e a marca deve ser capaz de entender o que o consumidor está querendo dizer.
Um exemplo recente é o caso da propaganda do iPad da Apple – e é apenas um dos muitos casos que ocorrem da mesma maneira. A Apple acaba tendo repercussão pelo seu status de marca mais valiosa do mundo e por ter uma legião de consumidores apaixonados. Para muitos, a Apple é quase uma entidade divina, que nunca erra, ainda que seja possível levantar muitos erros cometidos pela marca em produtos e, nesse caso, nas comunicações.
Para quem não viu, a campanha de lançamento do novo iPad saiu com um filme mostrando uma prensa gigante destruindo um conjunto de instrumentos musicais e materiais de arte. Ao final da destruição proporcionada pela prensa, surge o novo iPad, mais fino do que nunca. É claro que o que o filme quis dizer foi que o iPad possui um grande conjunto de possibilidades para você exercer a criatividade através do equipamento. Mas as pessoas perceberam de forma diferente.
Num momento em que estamos sentindo, mais do que nunca, o impacto da tecnologia em nossas vidas, mostrar que ela está esmagando os itens ligados à criatividade artística nos fere. Já há em curso uma disputa entre o tecnológico e o orgânico, que só se acirrou desde a abertura do ChatGPT para o público. Ainda estamos processando como adaptar a ferramenta no nosso trabalho e dia a dia, e muitas pessoas que trabalham com criatividade estão se sentindo pressionadas pela potencial substituição, se não total, parcial, das suas atividades pela inteligência artificial.
Além disso, há o legado humano, aquilo que nos faz únicos e que, obviamente, valorizamos porque nos dá uma certa identidade do que somos: as nossas imperfeições, dificuldades, talentos, costumes e comportamentos, muitas vezes paradoxais. Por isso, aceitamos e desejamos mais tecnologia, ao mesmo tempo que nos sentimos ameaçados por ela.
O comercial da Apple deixou de levar tudo isso em consideração para expor a vitória da tecnologia sobre a criatividade (e a falta dela), o talento (e a falta dele), e a substituição do orgânico, imperfeito, tosco e desajeitado jeito humano de fazer as coisas, com músicas fora de tempo, desafinadas, e pinturas com traços e riscos imperfeitos e desiguais. E isso nos feriu. Porque isso é, na essência, o que nós somos.
A perfeição da Apple parece muito pouco humana.
E então entra a Samsung. A Samsung é uma empresa cuja marca é baseada em produtos. Ela tem bons produtos, com excelente tecnologia, confiáveis, funcionais e com bom custo-benefício. E é por isso que ela vende tanto. Mas está longe de ter o “pizzazz” da Apple. Essa graciosidade, energia, ou vigor que a marca Apple exibe não é comparável ao que a marca Samsung consegue ter. Mas esse “pizzazz” também é hiperbólico, afetado, cansativo. Da mesma forma que ele atrai um enorme contingente de pessoas, ele também afasta muitos que acham a adoração toda pelos produtos (e marca) Apple um exagero. Que riem dos “applemaníacos” que ficam na fila fora da loja. Que não veem valor nos superfaturados produtos da marca.
Pois a Samsung, em especial nos EUA, busca exatamente esse grupo de consumidores. Ela atua não no amor pela marca Samsung, mas no desgosto de certas pessoas pela marca Apple. É uma estratégia de seguidor – que muitas outras empresas já usaram, como a Pepsi no Brasil, ou a Avis numa campanha histórica no mercado americano. E os erros da Apple movimentam os acertos da Samsung.
Ela tem dois outros comerciais excepcionais nessa mesma linha – um que faz piada justamente com os applemaníacos na fila do novo iPhone, usado no lançamento do Galaxy SII nos EUA, e outro que mostra a obsessão dos usuários da Apple por estar perto de tomadas, pela baixa capacidade da bateria de alguns produtos. Ela se posiciona, sempre, como a anti-Apple. E os anti-Apples também são uma tribo por si só!
A resposta da Samsung ao comercial do iPad critica os excessos tecnológicos da Apple. E acaba acertando justamente onde a Apple errou – na humanização da tecnologia. Na capacidade da tecnologia de engrandecer o talento humano – de pegar o nosso tom desafinado, a nossa coordenação motora imperfeita, os nossos erros e os diminuir, na medida que gostaríamos. Porque a tecnologia não está aqui para nos substituir. Mas para nos engrandecer.
A resposta da Samsung é humana. E dá um alento aos nossos medos e inseguranças com relação ao avanço da tecnologia. Por isso, é bem-sucedida. Ela fala conosco.
A resposta da Samsung é falha, tática e imperfeita – ela é uma comunicação que não está necessariamente alinhada à estratégia da marca. Ela dificilmente terá continuidade. Ela é, sim, oportunista. Por isso, também, ela é humana.
Num mundo onde sabemos que a tecnologia continuará a avançar e a mudar a forma como trabalhamos, criamos e nos relacionamos, humanizar as marcas é essencial. É preciso aprender a dialogar com a realidade paradoxal dos seres humanos. Porque, com a evolução tecnológica, estamos aprendendo cada vez mais a apreciar a beleza da imperfeição humana, e talvez queiramos conviver cada vez menos com a perfeição projetada por algumas marcas. Queremos diálogo. E, nesse caso, a Samsung soube nos ouvir.
*Marcos Bedendo é sócio consultor da Brandwagon, consultoria especializada em construir marcas. Também é professor de Branding e Marketing na ESPM-SP, e autor do livro “Branding: Processos e práticas para a construção de valor” e co-autor do livro “Marketing H2H: A jornada do marketing human to human” junto com Philip Kotler, Waldemar Pfoertsch e Uwe Sponholz.