Em pleno ano eleitoral, o país patina num atoleiro cujos desajustes políticos e econômicos parecem se retroalimentar. O caixa rebentado esvazia a credibilidade de nossos gestores públicos e o sistema combalido entrega as últimas migalhas a grupos tão organizados quanto imprudentes. Também já sabemos que o PIB crescerá menos que o esperado, enquanto as despesas orçamentárias não param de aumentar.
Diante de tal desequilíbrio, a Câmara dos Deputados dedicou parte da sessão de 6 de junho para deliberar sobre a criação de municípios. Na prática, se aprovado, o Projeto de Lei Complementar 137/2015 reabre a temporada de proliferação de entes federativos interrompida pela Emenda Constitucional 15, que retirou a autonomia dos estados, em 1996, e condicionou a matéria à edição de uma Lei Complementar Federal.
As regras agora propostas e já aprovadas pelo Senado preveem que o processo seria iniciado por requerimento dirigido à Assembleia estadual por 20% dos eleitores residentes na área que se pretenda emancipar. Estabelecem que tanto os pretensos novos municípios como os que perderiam população deverão ter ao menos 6 mil habitantes, se forem das regiões Norte ou Centro-Oeste; 12 mil habitantes, se forem da região Nordeste; e 20 mil habitantes, se forem das regiões Sul e Sudeste.
Entre outros pontos, o texto também estabelece como requisito a elaboração de Estudo de Viabilidade Municipal sobre as vertentes econômico-financeira, político-administrativa e socioambiental. Aprovado tal estudo pelos deputados estaduais, seria realizado plebiscito com a população dos municípios envolvidos, que daria a palavra final.
O parecer do relator do projeto em Comissão Especial opinou pela constitucionalidade e adequação financeira e orçamentária da proposta, apesar de ela não trazer qualquer estimativa de impacto nos cofres públicos.
Como se trata de um texto reciclado, algumas previsões já haviam sido feitas com base em projetos similares anteriores, quando estudos estimaram em ao menos 363 os novos municípios em potencial, considerando quantitativos populacionais mínimos e pedidos já registrados nas Assembleias. Defensores do projeto divergem e dizem que seriam, no máximo, 200.
Fato é que, conforme dados do IBGE divulgados em 2017, mais da metade da população vive em apenas 5,6% dos 5.570 municípios do país. Por outro lado, os pequenos núcleos urbanos representam 68,3% do número total de municípios, apesar de reunirem só 15,5% dos brasileiros. Esse panorama se consolidou entre 1984 e 1996, quando foram criados 1.405 municípios, sendo 94,5% deles com até 20 mil habitantes.
Estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), fundação pública ligada ao Ministério do Planejamento, já evidenciaram que esse processo de descentralização política e de recursos trouxe resultados negativos tanto no âmbito econômico quanto no social.
Ao analisar o fenômeno, os pesquisadores Gustavo Maia Gomes e Maria Cristina Mac Dowell demonstraram que uma de suas consequências foi o aumento das transferências de receitas tributárias de municípios grandes para os pequenos e que, ao final, o saldo foi de desestímulo da atividade produtiva global.
Também apontaram que a reduzida parte da população que vive nas pequenas cidades acabou beneficiada, apesar de não ser necessariamente a parcela mais pobre dos brasileiros. Isso prejudicou a maioria, que teve menos recursos tributários disponíveis. E, por fim, a pesquisa concluiu algo bastante intuitivo e fácil de entender: cresceu o volume de dinheiro público usado no custeio das administrações municipais e caiu o montante disponível para políticas públicas e investimentos.
Seja pelos estudos do Ipea ou pelos efeitos da recente paralisação de transportadores, já ficou claro que as soluções possíveis para o Brasil passam pelo conflito distributivo. Não existe um pote de ouro escondido, mas um enorme problema fiscal a ser resolvido com a contribuição de todos.
As regras do Projeto de Lei Complementar 137/2015 até transparecem razoabilidade e mostram preocupação com a viabilidade de cada município que poderia vir a ser criado. O texto, no entanto, é absolutamente intempestivo.
Ademais, o que não está no papel é a pressão que as distorções do Fundo de Participação dos Municípios podem exercer sobre a classe política, em detrimento de critérios legais objetivos. Como bem sabemos, o país não suportaria acomodações no intuito de partilhar o pouco que resta. A única coisa a ser dividida hoje é a conta.
* Dimas Eduardo Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)