O estrondo da tempestade despertou-me de um sonho sinistro. Trêmula, ergui o meu tronco da cama e limpei o suor escorrendo da minha nuca. Meus pés, ainda fragilizados pelos malditos saltos finos que eu resolvera usar na noite passada, tocaram o chão frio. Afastei o cansaço e caminhei até a janela panorâmica.
A incrível vista do Central Park mostrava-se escurecida. Por trás do vidro gotejado, relâmpagos rasgavam o breu da noite. A cena do sonho estranho lampejou no mesmo instante em que outro raio rompeu ao longe.
Um homem sem rosto estava sentado em um banco, murmurando palavras incompreensíveis. Suas roupas eram trapos sujos e suas mãos acariciavam um cachorro de rua. De súbito, ele se ergueu e veio em minha direção. Dei um passo para trás, mas antes que eu pudesse correr, algo sobrenatural aconteceu: o seu corpo levitou, tornando-se tão reluzente quanto um diamante. A luz forte me obrigou a fechar os olhos, porém, quando os abri, realizei o seu fulgor avançando sobre mim, tomando-me por completo.
Esfreguei os meus braços e apertei as pálpebras. Parecia tão real. Soltei um suspiro alto e olhei para o relógio digital sobre a cabeceira: quatro e meia da manhã. Balancei a cabeça em negação. O meu dia não seria fácil, e ia ficar pior ainda se a minha mente assonada não estivesse funcionando cem por cento. Fechei a cortina translúcida, tomei um copo de água e voltei para a cama. Puxei o lençol sobre as minhas pernas e fechei os meus olhos.
Fiz um esforço enorme para me concentrar em algo relaxante, mas nada parecia acalmar o fervor dentro de mim. Eu sabia que, se eu resolvesse pegar o celular, meu sono iria por água abaixo, mas não pude resistir. A ansiedade era maior que eu, maior que a vontade de dormir. Ao ligar o aparelho, uma mensagem de voz apareceu na tela principal. Leo. Engoli o medo, como quem engole um comprimido a seco. Sua voz rouca soou baixa, com uma nota de tristeza.
— Acabou, Catherine. Nosso relacionamento… Não dá mais.
A sua respiração se alterou, assim como o meu coração.
— Você sabia desde o princípio que eu estava com Angie. Eu não escondi nada de você. Não posso mais me arriscar. Eu tenho uma sociedade com o pai dela e… você sabe como o velho é. — Um suspiro angustiado cortou suas palavras. — O cara já estava de olho na gente. Ele quer você fora da empresa, Catherine. É melhor você nem aparecer amanhã… Jack vai assumir o seu lugar até encontrarmos outra pessoa. Eu… sinto muito.
O celular escorregou das minhas mãos. Minha cabeça tombou no travesseiro, pesada, como se fosse uma bola de metal. Meus ombros se retesaram. Abracei os meus joelhos, encolhendo-me de vergonha. Vergonha por ter me envolvido com o vice-presidente da empresa … e ainda por cima, noivo. Joguei tudo fora por causa desse crápula. Todo o meu empenho e dedicação. Sete anos lutando para conseguir chegar aonde cheguei. Lágrimas quentes desceram pela minha face.
— Sua idiota! — xinguei a mim mesma, em um rompante de irritação.
Fiquei um tempo sem me mover, sentindo o mundo desabar em minha cabeça, a mágoa me devorando por dentro, abrindo caminho para pensamentos sombrios. Olhei com amargura para as cicatrizes em meus pulsos. Um arrepio cruzou a minha espinha. Eu não posso me entregar novamente, não quero mais entrar nessa maldita escuridão.
O fatídico dia em que tentei tirar a minha vida voltou em minha mente como um pesadelo. Assim como as cicatrizes, aquele momento ficaria marcado para sempre, guardado em um lugar profundo, um lugar que eu não gostava de acessar. Já se passaram doze anos e parece que foi ontem. Em um surto de loucura, saltei da cama e fui até o bar montado na sala principal. Abri a garrafa de uísque escocês, presenteado pelo infeliz que me dera o fora. Peguei um copo de cristal e despejei o líquido amarelado como se fosse um simples refrigerante.
Merda!
O meu lado sensato reprimiu-me, mas o lado sofredor ganhou em disparada. Ergui o copo, brindando a volta da bebedeira, do vício que não me deixava em paz. Meu reflexo no espelho preso à parede abriu um sorriso nervoso, um sorriso de derrota. Que se dane! Sorvi um gole que desceu queimando, amortecendo o que não poderia ser sanado. A última gota não acalmou o meu anseio. Enchi o copo novamente, repetindo mais duas rodadas, até não restar mais nada.
Acordei com o barulho do interfone, a cabeça girando e a visão embaçada. Eu havia adormecido no sofá da sala – na verdade, desmaiado era a expressão correta. Ergui o meu tronco devagar, incomodada com o barulho incessante, caminhei em passos lentos até a cozinha e atendi o interfone. A voz do porteiro soou como uma buzina, avisando-me que alguém deixara uma caixa com alguns pertences. Eu já sabia o que era.
O desgraçado pediu para recolherem as minhas coisas do escritório, só para que eu mesma não fosse lá fazer isso. Meus olhos se encharcaram de mágoa. Sentindo a boca seca e um pouco de enjoo, bebi dois copos de suco de cranberry para aliviar o estômago. Preciso sair daqui.
Uma ducha gelada e roupas apropriadas para corrida depois, peguei o elevador e não gostei do que eu vi no espelho. Não eram as minhas olheiras que me incomodaram, mas a tristeza no interior dos meus olhos, o vazio inquietante, como se a minha alma tivesse sido soprada do corpo. O que estou fazendo com a minha vida?
A culpa apertou o meu peito e eu fechei os olhos, tentando imaginar uma saída, esforçando-me para não ser levada pelo emocional. A vingança só vai me destruir ainda mais… Um suspiro longo se soltou do meu peito. Assim que a porta do elevador abriu, vesti um boné e saí correndo em direção ao Central Park.
— Cuidado! — um motorista de taxi xingou, gesticulando com a mão para fora da janela.
Dei-me conta de que eu estava desatenta, atravessado a rua enquanto emergia na mensagem deixada por Leo no meio da madrugada. A voz dele martelando dentro de mim, danificando meu coração. Abaixei a aba do boné e continuei o percurso, desviando dos carros e das pessoas que atravessavam o meu caminho. Acelerei o passo ao entrar no parque, a natureza ao meu redor tornando-se um borrão esverdeado. Meu coração se apertou ao lembrar-me de que, no dia seguinte, eu faria trinta e sete anos. Eu perdi tudo… perdi tudo o que era de mais valioso pra mim.
— Isso não é verdade — uma voz sussurrou.
Parei abruptamente. Girei meu corpo, varrendo o local com os olhos. Não havia ninguém próximo, mas ao longe havia um senhor sentado em um banco. Era um mendigo, na faixa de uns 70 e poucos anos. Ele acariciava um cachorro e conversava consigo mesmo. De imediato, o sonho da noite passada se abriu como um filme. Mesmo amedrontada, me aproximei dele. O cachorro sentiu a minha presença, abanou o rabo e latiu.
— O senhor falou comigo? — murmurei, apreensiva.
Ele ergueu o olhar e eu congelei. Seus olhos eram envidraçados, duas esferas em um tom azul-claro. Ele é completamente cego, mas me encara como se não fosse… Todos os pelos do meu corpo se eletrizaram.
— Sim, Catherine. — Ele abriu um sorriso vibrante. — Eu falei com você.
Olhei para ele abismada. Demorou até que eu o questionasse.
— Co… como sabe o meu nome? — gaguejei, sentindo o meu coração bater forte.
Sua expressão se tornou séria. Ele se ergueu do banco com uma agilidade impressionante e se aproximou. O seu olhar lácteo sustentou o meu, e vi algo lampejar no interior daquela imensidão alva.
O homem não respondeu a minha pergunta. Apenas sorriu novamente.
— Eu posso sentir a sua tristeza. — A sua voz mansa me tocou. Lágrimas se formaram em meus olhos. — Sabe, a felicidade está dentro de você e… não fora. — Ele silenciou por um momento e pousou uma de suas mãos sobre o seu casaco rasgado. — O seu mundo interior é especial. Não precisa de ninguém para ser feliz. O sucesso está no prazer de viver, na alegria das coisas simples… coisas que jamais paramos para pensar
Ponderei suas palavras. Ele estava tão próximo que podia sentir o seu hálito quente. Quem é esse homem? De alguma maneira, algo se acalmou dentro de mim. Eu tirei o meu boné e limpei as lágrimas escorridas do meu rosto.
— É difícil — murmurei, encarando o seu rosto envelhecido. Seus cabelos tão alvos quanto seus olhos. — Sinto como se eu travasse uma guerra todos os dias. Procurando atingir um ideal perfeito… um ideal impossível.
Ele suspirou alto. Um brilho reluziu ao redor de sua cabeça.
— O ideal de todo mundo deveria ser a paz. — Sua voz ecoou em meus ouvidos. — O caminho é agradecer pelo que você tem e… não pelo que você não tem.
Eu engoli a mágoa reprimida em meu peito.
— Eu já perdi tantas coisas… até mesmo a minha integridade.
Seu sorriso se abriu. Naquele momento, senti que o cego podia me enxergar mais do que qualquer pessoa já havia me enxergado.
— As perdas da vida fazem parte do aprendizado… da jornada de cada um. Todos os seres humanos passam por perdas, no entanto, isso os torna mais fortes. A consciência só se desenvolve dessa maneira. — Ele abriu os braços e respirou fundo. — A experiência da vida é incrível. Não a desperdice com bobagens. Tudo o que você joga para universo volta para você com uma força ainda maior.
Eu refleti no conselho do idoso. Eu sabia que, nos últimos anos, eu não estava tomando atitudes boas. O meu envolvimento com um homem comprometido era apenas uma das coisas dentro da minha lista de erros. Bebida em demasia, sentimento de vingança, passando por cima dos outros para conseguir atingir o meu objetivo, ódio de mim mesma, raiva, traição, gastos em excesso, culpa, futilidade, pouco valor à vida… Uma série de imagens do passado me tomaram. Eu olhei para o cego à minha frente, que parecia ter um conhecimento acima da maioria. A felicidade transbordava dele, transbordava de sua alma.
— Pense nisso, minha criança — ele murmurou, cruzando suas mãos sobre o seu coração. — Às vezes, o nada é tudo. Quando achamos que estamos perdendo… é a hora certa para mudar, passar repensar em uma vida melhor, uma vida que valha cada respiração.
Subitamente, o cachorrinho saltou em meu colo. Eu o apanhei no ar, aconchegando-o em meu peito. Tal como seu dono, o olhar do animal era reluzente, sua alegria contagiante. Eu afaguei sua cabeça peluda e comecei a me sentir melhor. Do nada, gotas de água começaram a cair do céu acinzentado. Voltei-me para o homem sábio. A chuva o atravessava como se ele fosse apenas um holograma.
Mas o que…? Minha boca se abriu. Olhos brancos que me observavam se tornaram dourados como ouro. O temporal se intensificou, e eu abracei o animalzinho.
— Lembre-se de mim quando a tristeza inundar a sua alma, Catherine. Lembre-se de que você é muito mais do que apenas um corpo.
Sua voz retumbou no ar. Percebi a sua imagem sumindo, tornando-se um ponto brilhante até viajar para longe, para um lugar além da realidade.
— Adeus — murmurei, ainda chocada com o que eu havia presenciado.
O cão lambeu o meu rosto, despertando-me da imersão. Eu respirei fundo e sorri para ele.
— Você vai comigo para casa?
Ele balançou o rabo. Entendi como um sim.
Agradeci a paz deixada pelo sábio. Deixei a chuva lavar a minha alma por um tempo, limpar toda a sujeira acumulada. Caminhei devagar, abraçada ao me novo companheiro, absorta na paisagem ao meu redor, até chegar em casa. Voltei decidida a encontrar um novo caminho… encontrar a paz que eu perdera há muito tempo, a enxergar, mesmo no meio da escuridão. No fim, o ensinamento do ser de luz disfarçado de mendigo baseava-se em uma coisa só:
“Jogue amor e recolha amor”.
Essa é uma das leis do universo.
Conheça as capas do livro A Vila:
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