Lembro como se fosse hoje do lançamento do OpenSocial, conjunto de APIs que permitia a criação de widgets para redes sociais, no Brasil, em meados de 2008. Liderada pela Google, a iniciativa tinha como objetivo se tornar um padrão comum entre as redes sociais, atuando da forma mais neutra possível.
O OpenSocial dava acesso a três informações principais dos usuários das redes sociais aderentes: informações de perfil (dados do utilizador), informações sobre amigos (grafo social) e atividades dos usuários (ações ocorridas e atualizações por parte dos usuários).
Na época, diversas redes sociais aderiram ao projeto: MySpace, Orkut, hi5 e Sonico foram algumas delas. O Facebook, por outro lado, ficou de fora.
Se você tem idade suficiente para lembrar de todas essas redes sociais, provavelmente lembra também do fenômeno “Colheita Feliz”, jogo integrante da empresa que cofundei em 2008, a Mentez, e que atingiu, na época, mais de 30 milhões de usuários ativos por mês.
O Colheita Feliz, e seu estrondoso sucesso, só foi possível graças ao OpenSocial, ao compartilhamento dos dados de usuário, seus amigos e atividades. O jogo não era o motivo para o OpenSocial ter sido criado, mas sua existência só foi possível graças à tecnologia e à abertura de informações, trazendo uma experiência nova e de altíssima demanda. Mal sabíamos nós o quanto existia a necessidade de um entretenimento mais acessível financeiramente. O jogo tinha modelo freemium: era gratuito e continha itens pagos, vendidos através de microtransações (pacotes de pequeno valor), outra novidade que implementamos na época.
Estando à frente da operação na empresa, formando os times e gerenciando o produto, seu crescimento e atendimento, não dava muito tempo de refletir sobre o que estava acontecendo. Lançamos mais jogos, continuamos crescendo a empresa e a solução de pagamentos por trás deles. Mas olhando em retrospecto, percebo que estávamos diante de uma dessas oportunidades únicas, proporcionadas por transformações tecnológicas que impactam o comportamento das pessoas e criam novas possibilidades de produto, algo que acontece poucas vezes na vida de alguém.
Corta para 2022. Com o PIX já estabelecido e o Open Finance (antigo Open Banking) tomando cada vez mais forma, percebo o quanto estamos, novamente, diante de uma transformação inquestionável, que dará margem para muitos novos negócios de impacto surgirem.
E aqui temos um impulso muito maior! Enquanto o Google não podia obrigar toda a Internet a adotar o OpenSocial, o que eventualmente contribuiu para que a iniciativa deixasse de existir, o BACEN tem essa força. Sabiamente, nosso Banco Central tornou compulsória a adesão ao Open Finance de qualquer instituição com mais de 500 mil contas abertas, incluindo assim os chamados “bancões”. Veja bem, se a adesão fosse opcional, o quanto essas instituições iriam querer sair do seu conforto e entregar o poder de suas próprias informações às mãos dos usuários?
Assim como o OpenSocial previa compartilhamento de uma série de informações, o Open Finance também o faz, com divisão em quatro etapas. Em sua primeira fase, foi realizado o compartilhamento de dados institucionais entre os participantes e na segunda fase, o compartilhamento de dados de clientes, relacionados a serviços bancários, como contas e cartões de crédito. Estamos agora na terceira fase, em que haverá a integração de serviços, com início de transações de pagamento, e ainda teremos a quarta fase, em que serão compartilhados dados de serviços relacionados a câmbio, credenciamento, seguro, investimento, previdência e conta salário.
Já começaram a acontecer as primeiras implementações de ITP – Iniciador de Transação de Pagamentos, e eu mal posso esperar pelo tanto de novidades e novos usos que esse modelo vai permitir. De forma bem resumida, através de uma iniciação de pagamento o usuário consegue acessar e usar seus recursos sem precisar estar no ambiente do banco.
Para quem olha desavisado isso não parece nada demais. Mas dada minha experiência prévia, consigo entender que esse simples fato pode gerar uma onda de novas soluções focadas na experiência real do cliente. Essas novas empresas e novos produtos não precisam ser um banco (não precisam custodiar o dinheiro), o que permite muito mais inovação. Eles podem focar em simplesmente entregar o que os clientes precisam em termos de como querem usar seu dinheiro, e isso é muito poderoso.
Muito temos falado da web 3.0, mas tem mudanças muito mais próximas acontecendo bem debaixo do nosso nariz. As ITPs ainda estão em sua infância, o próprio PIX ainda foi pouco explorado, apesar da adesão massiva. Não tenho dúvidas de que veremos empresas transformadoras surgindo bem diante dos nossos olhos e que a forma como lidamos com nosso dinheiro vai mudar bastante e para modelos muito mais alinhados com nosso próprio interesse como usuários (e reais donos do dinheiro).
*Tahiana D’Egmont é sócia e Growth Advisor da Cumbuca, primeira fintech brasileira a oferecer conta compartilhada gratuita via aplicativo, uma espécie de conta conjunta reinventada. Tahiana atua profissionalmente no mercado digital desde 2001, tendo sido fundadora e executiva de múltiplas startups, incluindo Mentez (do jogo Colheita Feliz, do Orkut), Kickante, MaxMilhas, Growth Leaders Academy e Merlin.