Claudia de Lucca Mano*

A recente aprovação da tirzepatida (Mounjaro®️) pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento da apneia obstrutiva do sono (AOS) em adultos com IMC igual ou superior a 27 kg/m² reacendeu um debate que há anos ronda consultórios, farmácias e conselhos profissionais: afinal, até onde vai a competência do cirurgião-dentista quando o tratamento da apneia envolve terapias sistêmicas, especialmente agonistas de GLP-1?

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Tirzepatida

A discussão ganhou força porque a AOS é um território histórico da Odontologia, regulamentado pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) e consolidado pela literatura científica. Portanto, não surpreende que a nova indicação da tirzepatida toque diretamente a fronteira regulatória entre abordagens odontológicas e medicamentos sistêmicos.

É preciso começar pelo básico: a Anvisa regula o produto, não o profissional.

A Agência não tem competência legal para definir quem pode ou não prescrever medicamentos; seu papel se limita ao registro, às indicações, à rotulagem e às regras de dispensação. A delimitação da atuação profissional é atribuição exclusiva dos conselhos de classe.

Prova disso é que a própria Anvisa, após provocação do SOERGS (Sindicato de Odontologistas do Rio Grande do Sul), revisou a Instrução Normativa 360/2025 e retirou a expressão “prescrição médica”, substituindo-a por “sob prescrição”, reconhecendo expressamente que não lhe cabe restringir a prescrição odontológica de medicamentos sujeitos à retenção de receita. Ou seja, a aprovação da tirzepatida para AOS não altera, por si só, o escopo de atuação de nenhuma categoria profissional.

Do ponto de vista técnico e ético, o CFO já deu a resposta: o dentista pode prescrever tirzepatida quando essa prescrição estiver inserida no tratamento da apneia obstrutiva do sono.

Isso exige responsabilidade clínica, domínio farmacológico e, preferencialmente, atuação interdisciplinar, que, na Odontologia do Sono, não é recomendação, mas dever ético. Trata-se de uma área com resoluções próprias, articulada com a Odontologia Hospitalar e amplamente respaldada pela literatura.

A nova indicação da Anvisa não inaugura nada de revolucionário; apenas acrescenta uma alternativa farmacológica a um campo terapêutico que já integra múltiplas abordagens.

Um ponto frequentemente distorcido nesse debate diz respeito à perda de peso. No contexto da AOS em pacientes com sobrepeso ou obesidade, emagrecer não é consequência estética, mas parte direta do manejo clínico.

Redução de gordura cervical, diminuição da circunferência do pescoço e melhora dos índices respiratórios são efeitos desejados e cientificamente documentados. Por isso, o fato de a tirzepatida promover perda de peso não deslegitima sua prescrição pelo dentista — desde que o objetivo seja tratar a apneia, e não o emagrecimento isolado.

Tirzepatida e a fronteira

A fronteira é clara, técnica e ética: o dentista não prescreve tirzepatida para perder peso, mas para tratar uma doença respiratória do sono em que a redução ponderal é componente fisiopatológico do tratamento.

No âmbito das farmácias de manipulação, o cenário também permanece objetivo. A preparação magistral estéril de tirzepatida continua permitida, desde que o insumo farmacêutico ativo esteja regularizado e que a farmácia cumpra rigorosamente normas como a RDC 67/2007, RDC 471/2021, IN 360/2025 e a Nota Técnica 200/2025. Como substância sujeita à escrituração e retenção de receita, sua dispensação exige rastreabilidade total no SNGPC e avaliação técnica cuidadosa do farmacêutico, independentemente da categoria profissional responsável pela prescrição.

Temos observado, aliás, grande preocupação do varejo farmaceutico (farmácias e drogarias), sobre a possibilidade de aceitar receitas de odontólogos para GLP1. Isso porque a vigilância sanitária fiscaliza os atos de comércio, seja atraves da obrigatória escrituração no SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados), seja nas inspeções in locu. São muitas as autuações sanitárias por aceitar prescrições de profissionais não habilitados. Ocorre que não cabe as farmácias fiscalizar o exercício ético de profissionais de saúde, o que representa ônus excessivo aos farmacêuticos do varejo.

Em síntese, o arcabouço regulatório atual permite tanto a prescrição quanto a manipulação da tirzepatida no tratamento da apneia obstrutiva do sono em pacientes com sobrepeso ou obesidade. A atuação do dentista é legítima quando há nexo clínico com o manejo da AOS e responsabilidade profissional compatível com a complexidade terapêutica. E é isso que distingue o exercício ético da extrapolação indevida. Não há expansão arbitrária do escopo odontológico, mas o reconhecimento de uma interseção real e bem fundamentada entre terapias farmacológicas e abordagens odontológicas em distúrbios respiratórios do sono.

No fim, a pergunta relevante não é se o dentista “pode” prescrever tirzepatida, mas se a prescrição está clinicamente vinculada ao tratamento da apneia. Quando a resposta é sim, e apenas nesse caso, a atuação não apenas é permitida, mas coerente com a evolução natural da Odontologia do Sono e com a própria lógica terapêutica da AOS.

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos

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