Operadores diários do direito, seja como consultores, seja no terreno contencioso, certamente não fazem ciência. Em alguns momentos, exsurgem brilhantismos próprios do engenho e arte, determinantes de resultados de prevenção ou composição de lides, mas não há falar em atividade científica.
No mundo acadêmico, temos prospecção ou pesquisa. Ainda assim, não há, no mundo jurídico, o cuidado que se observa nas investigações da biologia, da física, da química etc. Conclusões que clamavam por amadurecimentos são dadas como certas e, por vezes, terminam a orientar decisões judiciais, fenômeno que torna a ciência do direito, ainda que com essas deficiência, uma ciência normativa. O pensar acadêmico obriga a conduta humana.
Seja como for, devemos sair em busca do profundo. Nossas ferramentas são os princípios. Não os confudam com princípios gerais de direito, geralmente cobertos por brocardos jurídicos vazados em latim (o latim é um idioma cujas armações linguísticas parecem de aço). São princípios que vão ter com a filosofia, a sociologia, a literatura, a retórica e outros exercícios do pensamento que nos auxiliam na busca do mais fundamental valor da humanidade social, desde as preocupações de Aristóteles: a procura do justo.
Pois bem. Emitiu-se a ideia de que o desentramento do Brasil dessa crise sem precedentes depende de mudanças trabalhistas e previdenciárias. Foi o primeiro escorregão. Não há relação causal isolada entre esses sistemas normativos e a reconstrução ou construção de nosso País.
A previdência pode carregar ônus que as finanças públicas devem afastar, mediante observações sistemáticas e exaurientes. Já uma “reforma” trabalhista é dependente de avançado conhecimento do direito do trabalho.
Data de décadas a inclusão na pauta política mundial do tema da flexibilização das leis trabalhistas. O leitmotiv da flexibilização deitou suas raízes no empresariado médio do mundo e significa que deve haver maior espaço para a veiculação da vontade dos empregadores. As normas trabalhistas são cogentes, seriam extremamente coativas, enquanto instrumento tutelares do hipossuficiente, expressão tomada de empréstimo da medicina. Somente nesse espaço contido o empresariado poderia agir. Ainda assim, não há como contestar o enorme fosso existente entre a renda dos assalariados e os lucros dos empresários. No Brasil não é fosso, é uma cratera, o que já seria motivo para se duvidar da necessidade dessa reforma, tomando-se como paradigma realidades completamente diferentes.
A uma flexibilização desse tipo, é necessário trazer a vontade, o livre arbítrio, o contrato, o “pacta sunt servanda”, para o centro do palco. E afastar as normas tutelares do mais fraco. Ora, essa característica é a principal distinção do direito do trabalho no mundo dos demais segmentos jurídicos. E não caiu do céu. Foi uma construção, demorada e refletida por grandes pensadores, para, dando-se ao empregado a tutela da lei, evitar o confronto rubro que a história noticiou desde a revolução industrial. Em suma, um conjunto de regras destinado a “dar-se os anéis, para salvar-se os dedos”.
Em suma, a civilizar-se a luta de classes.Essa tendência se universalizou. E não foi em razão de consensos brotados do subjetivo. Deu-se em razão da imperiosidade de igualar-se os custos de produção e regular-se a livre concorrência e o comércio internacional. Custo de produção situado num patamar de proximidade permite a concorrência marcada por um mínimo de lógica. Não à-toa a China domina os mercados mundiais. Sem legislação do trabalho, explora-o o quanto pode, obrigando outros países a substituir o custo do trabalho por imposições tributárias de caráter protecionista.
Voltando ao núcleo da análise, direito do trabalho não é espaço próprio para a contratualidade individual. O que se admite é a convencionalidade coletiva, intermediada pelos sindicatos, que podem falar com os empregadores de igual para igual.
A outra erronia exegética é que se está a substituir uma velha lei, de 1943, e de inspiração fascista. Nada mais insólito. O que se deu foi uma consolidação, uma arrumação congruente de leis esparsas existentes anteriormente, e que vieram à luz para atender aos movimentos trabalhistas, que estiveram presentes em nosso País desde a década de vinte do século passado.
A inclinação fascista somente se manifestou nas normas relativas aos sindicatos, sem espaço para estatutos, entes criados sob a benção do tirano e sujeitos a interferências (abstratas) e intervenções (concretas). Em relação aos sindicatos, sim, “nada fora do Estado, nada contra o Estado, tudo dentro do Estado”, no melhor estilo dos “camisas pretas”. Isso foi rompido com a Carta Constitucional de 1988. Eis a “contradictio in adjecto”: devemos reformar para fugir do fascismo e reduzir o número de sindicatos, que o fascismo fazia com maestria…
As distinções entre capacidades volitivas não existem somente na relação entre o capital e o trabalho, mas também no direito civil e comercial. Passou-se a admitir, não sem hercúleos esforços, a anulação de contratos firmados sob o vício da “lesão maior”. Alguém vende um imóvel familiar a preço vil, para enfrentar, por exemplo, um custoso tratamento médico. Os juízes passaram a ter poder de revisar esses contratos. O grande civilista Orlando Gomes, entre nós, falou por todos sobre a temática. No campo do direito comercial, ninguém discute as cláusulas bancárias de um financiamento imobiliário. No entanto, tornou-se curial a revisão judicial em proteção do consumidor. E, no direito do trabalho, querem a liberação geral. O “acordado” – individual – sobre o “legislado”.
Postas essas premissas, podemos dizer que a única flexibilização necessária estaria em dar-se, sem fugir de parâmetros normativos, tratamentos diferenciados entre pequenas, médias e grandes empresas, com compensações aos trabalhadores em conformidade com o crescimento das empresas. Seria a equidade, posto que – não só pelas obrigações trabalhistas – muitas empresas, lojas comerciais, por exemplo, não passam de seis meses de vida. Em geral, o carrasco não são as obrigações do trabalho, mas a propriedade impiedosa, os alugueres, sobretudos nos shopping centers. E as franquias, uma forma indireta de domínio dos mercados, malquista pela Constituição e devidamente disfarçada. Perguntem a respeito a pequenos e médios empresários. A esse tipo de flexibilização necessária o projeto de reforma aprovado pela Câmara não trouxe uma única palavra.
A conclusão está em que demônios mitológicos armaram uma tempestade desnecessária no Brasil, no respeitante à reforma trabalhista. Sem que mudanças nesse campo – as estritamente necessárias e convenientes – fossem obra de especialistas. Por ignorância dos princípios do ramo, das causas econômicas de nosso “débláque” e, em consequência, de todos os equívocos que são inafastáveis de bases teóricas sem solidez.
Para que não se diga que não citamos sequer um exemplo, falemos do trabalho “intermitente”. Trabalho por hora. ?? paga somente a hora de trabalho. E dizem que isso não se reflete no art. 7º da CF, que descreve os denominados direitos de segunda geração. Não é preciso dizer que um só deles fique suprimido, para abalar-se o contexto. Basta permitir-se, por exemplo, que o FGTS não incida mais sobre a remuneração mensal. Faz-se como no direito tributário. Não se dá isenção, porque é proibido. Fixa-se alíquota zero… Por isso e muito mais é que somos o País do “jeitinho”.
Quanto ao imposto sindical, não é preciso lembrar que a Constituição prestigiou, consagrou uma velha contribuição. Deu a lei altitude constitucional. Essa manifestação do constituinte originário ficou expresso no art. 8º, inciso V, da atual Carta da República, ao consagrar a “contribuição confederativa”, “independentemente da contribuição prevista em lei”, é dizer, precisamente o imposto sindical.
Nos termos em que J.J. Canotilho exprime: “A utilidade da interpretação constitucional conforme as leis seria particularmente visível quando se tratasse de leis mais ou menos antigas, cujos princípios orientadores lograram posteriormente dignidade constitucional. A interpretação da Constituição de acordo com as leis não aponta apenas para o passado. Ela pretende também abarcar as hipóteses de alteração do sentido da Constituição mais ou menos plasmadas nas leis ordinárias.”(“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7a. ed., Almedina, p. 1.234) .
Logo, lei derrogatória, desprovida dessa dignidade, somente será eficaz depois de nova norma constitucional – emenda – retirar do texto magno o valor por ele concedido à lei revogada. Sem isso, lei infraconstitucional estaria fazendo pouco de uma consagração superior e de espessa densidade normativa. Ensejando um vazio constitucional, contrário ao texto magno.
Complementa o mestre português que “Uma lacuna normativo-constitucional só existe quando se verifica uma incompletude contrária ao “plano” de organização constitucional.” (idem, p. 1.235). Enfim, não se pode abolir o imposto sindical sem que se ocasione uma inegável lacuna no verbo da lei maior, que somente seria recomposto por meio de uma reforma constitucional adaptada à nova lei ordinária.
?? bom que o conceito invada as mentes dos que dão a extinção da contribuição sindical como favas contadas. Se necessitamos – essa sim – de uma enorme reforma educacional, precisamos resgatar, com urgência, a proficiência de nossos estudos jurídicos, a altivez e independência de nossos professores e pesquisadores, para exclamar em bom som neste País: transformações jurídicas só podem ocorrer depois de examinados os fenômenos por especialistas, seguindo-se, num segundo momento, as opções políticas. O bom direito é capaz de prevenir terremotos sociais ditados por governos inscientes de pretensões a que se propõe.