Depois de narrar a pirâmide de fatos criteriosamente ordenados segundo a gravidade (no caso, queda de avião, corrupção e tráfico de drogas…), o apresentador do noticiário finalmente esboça o sorriso discreto que precede a leitura da reportagem final da edição ??? aquela que antecede a novela ???, costumeiramente a mais leve e inspiradora de todas: “Pela primeira vez, o vencedor do Nobel de Literatura foi um músico: o cantor e compositor, Bob Dylan. O anúncio foi feito hoje, em Estocolmo, na Suécia. De origem pobre, Dylan criou novas expressões poéticas dentro da grande tradição de canções americanas”.

Era o mais importante prêmio da Literatura Mundial ??? concedido pela primeira vez a um músico ??? sendo anunciado no mais importante jornal do país. (O que está hoje na Educação, na Política e nas Artes esteve antes na Literatura. O registro simbólico da palavra é a maior forma de transmissão de conhecimento, sem o qual não seria possível estabelecer uma cultura.) 
No sofá, o casal acompanha sem piscar o magnetismo da sucessão de imagens narradas pela voz do repórter. Enquanto assistia, o marido se lembrava de quando tocava músicas de Dylan na época que sonhou ser astro de rock, e que depois foi convencido a buscar a promissora carreira de advogado. A esposa até tinha escutado versões traduzidas das canções do astro norte-americano nas vozes de Humberto Guessinger e Samuel Rosa, mas sem saber da verdadeira autoria. 
Naquela noite, o mundo se rendia a Bob Dylan, artista de sensibilidade incomum e de uma capacidade rara de transformar impressões sensoriais em palavras que tocam o coração das pessoas. Seu talento legou duras e belas letras, como em Masters Of War: ???Vocês que constroem todas as armas/Vocês que constroem os aviões mortais/Vocês que constroem as bombas grandes/Vocês que se escondem atrás de paredes/ Vocês que se escondem atrás de mesas /Eu só quero que vocês saibam /Que eu vejo através das suas máscaras???. E Blowing In The Wind: Quantas estradas um homem deve percorrer/Pra poder ser chamado de homem?/Quantos oceanos uma pomba branca deve navegar/Pra poder dormir na areia?/Sim e quantas vezes as balas de canhão devem voar/Antes de serem banidas pra sempre?” 
Mas na opinião de um dos entrevistados pelo jornal, no fundo, Robert Allen Zimmerman (Bob Dylan) é só um homem comum capaz de enxergar e traduzir as atrocidades de um mundo doente. ???A grande diferença talvez seja sua coragem de usar o próprio trabalho para mostrar isso aos demais e não ser só mais um ser humano apático???. 
Inquieto, após a reportagem, o marido escuta as últimas palavras do apresentador como quem só espera o final de algo imperdível para tomar uma atitude importante. Ao ouvir o emblemático ???boa noite???, ele então pega o controle remoto e… aumenta o volume da televisão. 
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