Jovem mãe solteira, com uma criança portadora de Síndrome do Zika Congênita, abandonada pelo marido, que largou o emprego para cuidar de seu filho, levá-lo para a realização de inúmeros exames e arcar com os custos de sessões particulares de fisioterapia são uma triste realidade que o país vive há cerca de um ano.
A causa de tudo isso é um surto que o país não têm conseguido controlar, aliado à falta de estrutura para atender estas famílias. Transmitido pelo mesmo mosquito que causa a dengue e o chikungunya, o zika começou a ser noticiado no início de 2015. Naquele mesmo ano, os casos aumentaram especialmente na região Nordeste. Já no final daquele ano, o assunto foi elevado ao patamar de surto.
Dados do Ministério da Saúde registraram, até dezembro de 2016, um total de 211.770 casos de zika em todo o país, sendo cerca de 67 mil no Rio de Janeiro, 21 mil no Mato Grosso e 15 mil em Minas Gerais.
Em julho de 2016, o Ministério da Saúde divulgou um boletim confirmando 1.749 casos de microcefalia e/ou malformações sugestivas de infecção congênita relacionada ao zika vírus. Naquela data, outros 3.062 casos estavam sob investigação.
“Podemos supor que dados confiáveis atualizados sobre o número de crianças afetadas não existem no Brasil”, afirma o Dr. Thomaz Gollop, Professor Associado de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA).
Exames caros, orientação especializada e terapias em grupo já são oferecidos em alguns poucos centros do país, deixando grande parte das famílias afetadas ainda sem apoio.
Panorama bastante diferente é vivido na Flórida, que viu os casos de zika aumentarem a partir de fevereiro de 2016. Imediatamente, o governo local passou a disponibilizar à população kits de prevenção contendo repelentes e preservativos, e passou a realizar tratamento especial na rede de água, adicionando larvicidas para eliminar as larvas dos mosquitos.
A partir de julho, quando os primeiros mosquitos portadores de zika foram localizados na região, agentes treinados passaram a vistoriar as propriedades com o intuito de eliminar focos de água parada. Hoje, mesmo o assunto não sendo mais tratado como emergencial, o Estado da Flórida mantém um serviço telefônico gerenciado pelo Departamento de Saúde, que oferece orientações à população e recebe denúncias e solicitações de inspeção de possíveis focos do mosquito.
Estudos sobre o tema
Estudo da Fiocruz denominado Zika Virus Infection in Pregnant Women in Rio de Janeiro, publicado no The New England Journal of Medicine em 15 de dezembro de 2016, constatou que 39,2% das grávidas infectadas com o vírus tiveram bebês com alterações neurológicas e 7,2% das gestações não chegaram ao fim, totalizando 46,4% de desfechos desfavoráveis.
Segundo o estudo, 55% das gestantes que contraíram Zika no primeiro trimestre da gestação tiveram algum tipo de desfecho desfavorável. Entre as alterações mais verificadas estão calcificações cerebrais, atrofia cerebral, dilatação dos ventrículos cerebrais e hipoplasia de estruturas cerebrais, além de casos de hemorragias cerebrais. Também foram observadas alterações em exames oftalmológicos e de audição, além de rigidez de articulações, denominada de artrogripose.
Outro estudo, desta vez realizado nos Estados Unidos e publicado no Jornal da Associação Médica Americana (JAMA), encontrou entre 442 gestações de mulheres com evidências laboratoriais de possível infecção pelo zika vírus, 26 fetos ou crianças com anomalias. Dos 395 nascidos vivos, houve 21 bebês com defeitos congênitos. As principais alterações foram a microcefalia e outras anormalidades cerebrais, incluindo calcificações intracranianas, anormalidades do corpo caloso, formação cortical anormal, atrofia cerebral, ventriculomegalia, hidrocefalia e anormalidades cerebelares.
Dentre as mulheres com infecção ocorridas no primeiro trimestre da gestação, 11% dos fetos ou crianças apresentavam evidências de defeitos congênitos associados ao zika.
“Como podemos verificar, as estatísticas revelam dados conflitantes”, alerta Dr. Thomaz Gollop.
Recentes descobertas
Há cerca de um mês, uma notícia chegou à imprensa como um balde de água fria. Até então, acreditava-se que a única via de entrada do vírus da zika era a proteína AXL. A ideia de muitos laboratórios vinha sendo a tentativa de impedir a entrada do vírus nas células por meio da inibição do contato com essa proteína. Mas este novo estudo conduzido pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, revelou que o zika vírus consegue invadir as células cerebrais mesmo sem essa proteína.
Com este achado, voltamos ao estágio de procurar descobrir os meios de entrada do zika nas células, para então buscar uma forma de impedir que isso aconteça.
Zika e o aborto
Enquanto pesquisadores do mundo inteiro estão focados em meios de proteger a população do zika vírus e minimizar as consequências caso isto aconteça, mães e familiares das crianças já acometidos pela Síndrome do Zika Congênita são vítimas da falta de amparo no Brasil. O sofrimento vivido por estas pessoas desde o diagnóstico é tão violento que já se cogita a ampliação do direito ao aborto legal para as gestantes infectadas pelo zika vírus.
A medida tem, inclusive, o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). Relatores especiais da entidade afirmam que a negação do serviço de aborto não criminalizado nesses casos pode ser caracterizada como tortura.
O primeiro passo foi dado em agosto de 2016, quando a ANADEP (Associação Nacional de Defensores Públicos) ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal solicitando que grávidas afetadas pelo zika vírus tenham direito ao aborto além de outras formas como o Benefício Continuado. Esse direito já vem sendo concedido na Colômbia, onde também ocorre uma epidemia de zika.
A ação não tem prazo para ser votada, mas já recebeu posicionamento contrário do Senado, que afirmou que a eventual liberação constituiria intromissão em atribuições do Poder Legislativo.
A urgência das gestantes que vivem atualmente este drama, é outra. O número de mulheres que solicitam auxílio para interromper a gravidez está crescendo no Brasil e em outros países da América Latina após a instalação da epidemia pelo vírus.
O estudo “Pedidos de aborto na América Latina relacionados a preocupações sobre exposição ao zika vírus”, publicado em junho de 2016 no New England Journal of Medicine, analisou as requisições de medicamentos abortivos que chegaram ao site Women on Web (WoW), uma rede internacional pró-aborto que auxilia mulheres que desejam interromper sua gravidez. Na pesquisa, foi verificado um aumento substancial nos pedidos de ajuda após o anúncio oficial da Organização Pan-americana de Saúde (Opas/OMS), que publicou um alerta sobre o zika vírus na América Latina em novembro de 2015.
Com base no ritmo anterior, houve um aumento de 108% – o maior registrado entre todos os países pesquisados – com 1120 pedidos de ajuda, ao invés dos 581 esperados para o período.
Culpa x Responsabilidade
A Síndrome do Zika Congênita é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, que contamina a gestante com o vírus. O processo é o mesmo nos Estados Unidos, no Brasil e em qualquer outro país do mundo. A grande diferença é a importância que cada governo dispensa ao assunto, bem como as ações e investimentos destinados ao problema.
No Brasil, a primeira reação das autoridades foi a tentativa de minimizar o problema, informando à população que a infecção eventualmente levaria à microcefalia, sem maiores consequências. Hoje já se sabe que as consequências são gravíssimas e vão muito além da microcefalia.
“Parece que as autoridades da saúde pública no Brasil abandonaram as preocupações com saneamento básico, assim como o apoio às mulheres e seus filhos afetados”, avalia Dr. Thomaz.
Zika no mundo
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 48 países e territórios reportaram em 2016 mais de meio milhão de casos suspeitos, com 2,5 mil notificações de síndromes congênitas associadas ao vírus.
Após surgir no Brasil em 2015, especialmente na região Nordeste, o vírus se espalhou rapidamente pelas Américas. Atualmente, o zika também já foi detectado na Ásia e em alguns países da África.