Que um menino pode ser agitado, todos nós já sabemos. E que um outro pode ser muito aluado, cheio de fantasias… E aquele ali pode gostar de ficar mais no canto dele… Outro é briguento. Aquele outro é doido por doces. E o outro ali tem dificuldades em algumas matérias. Isso não precisava, necessariamente, ser um problema psicológico. Até porque podemos encontrar no mesmo menino todas essas características na mesma semana. Quem sabe até no mesmo dia!
Contudo, hoje assistimos à popularização dos diagnósticos. Todos agora são leitores assíduos da internet e acreditam piamente nos sinais e sintomas descritos ali de forma tão objetiva e simplificada. Muita agitação e questionamentos? ?? hiperativo. Distraído? Déficit de Atenção. Fantasias ou jeito diferente? Esquizofrenia. Fica mais na dele? Só pode ser Autismo ou o nome mais chique, Asperger. Além dos diagnósticos-relâmpago, as siglas também podem nos confundir, principalmente quando percebemos que não é mais o João que está ali sentadinho, comendo sua merenda, é o “DI” (deficiente intelectual). O amigo ao lado passou de José para “o TDAH” (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e por aí vai.
Para falar da linha divisória entre o normal e o patológico, precisaremos falar da norma. Norma é, primeiramente aquilo que nos define e nos diferencia. Ela funciona para separar as pessoas em grupos e seus comportamentos, em categorias.
Quem define o que é normal? Os estudiosos. Quem financia esses estudos? O capitalismo. Sendo a lógica do capitalismo baseada no lucro e na sobreprodução, as categorias do que é normal, na verdade, poderia dizer, o que é “normal para o capitalismo”. E o que é normal para o capitalismo não precisa ser normal para você. Existem tipos muito estranhos de pessoas normais para o capitalismo, e que se dão bem destruindo a natureza e pisando nos seus semelhantes.
Se você ainda tem alguma dúvida sobre a eficiência dos diagnósticos no mundo pós-moderno, pergunte-se quem decide a pesquisa que vai ser financiada e ir para frente daquela que vai minguar até desaparecer na penúria. O capitalismo investe naquilo que interessa para seu modo de funcionar e ponto. Isso não precisa coincidir com diversidade, criatividade, tolerância, solidariedade ou, a tão em moda, qualidade de vida.
Enquanto estivermos preocupados com comparações, classificações, separações, nomeações, divisões em categorias, estaremos favorecendo a cultura capitalista. Essa forma de funcionamento impõe condições adversas e perversas que não estão a favor da vida, mas sim dos lucros.
Não é à toa que muitas vezes parte da escola as demandas por diagnósticos-relâmpago. Ninguém quer saber se a aula está chata, se o professor, explorado demais, se a coordenação apresenta metas descabidas, se a direção é tirana; basta encaminhar o aluno ao setor de saúde, diagnosticar e tratar. Precisamos de alunos obedientes para depois obter os funcionários obedientes. O capitalismo agradece.
Um encaminhamento da escola cujo resultado é a medicação de uma criança é visto como uma confirmação de sucesso da percepção da escola e como um cuidado da própria família. Relação amistosa entre educação e saúde, em busca de solução final para o problema. Acredito que o nazismo nos ensinou a temer as soluções finais.
Para manter alguém longo tempo em confinamento foi preciso estabelecer um complexo de relações de poder. Muita gente séria já estudou isso, mas, infelizmente, pouca gente bancou fazer uma escola realmente diferente. Porque comprar mobílias engraçadinhas, refazer a decoração e exibir frases motivacionais pelos corredores não faz uma escola se tornar mais democrática. Seria como colorir as paredes do antigo Carandiru ao invés de demolir. Bom que demoliram.
Além da medicalização, a psicoterapia compulsória e curativa pode ser tão terrível na vida de uma criança quanto o remédio tarja preta. Um verdadeiro desserviço prestado à Psicologia séria. Porque a Psicologia de verdade se recusa a simplesmente atender a demanda, reduzindo uma criança a uma sigla, reduzindo as sessões às aplicações de testes. O psicólogo experiente sabe que quando uma criança é trazida ao consultório ela traz junto o seu contexto e, fatalmente, vai ter que atender a mãe, o pai, o irmãozinho, conversar com a vizinha, conhecer o animal de estimação, tomar chá com os avós e sim, passar um bom tempo na escola sentindo o impacto de como as coisas funcionam ali.
Isso dá trabalho, leva tempo, pode ser doloroso e até arriscado. E não tem receita de bolo, não se reduz a uma troca de relatórios entre psicólogo e professor, um confirmando o outro ou um acusando o outro. Isto é, os resultados são imprevisíveis e muita gente não vai gostar do que vai ter que ouvir, ver, encarar, transformar. Então, recorre-se à solução reducionista, com suas mordaças químicas e seus rótulos de exclusão.
Vejo que a medicalização e os diagnósticos atinjam principalmente os meninos e noto, mais uma vez, outro tipo de violência de gênero. O sexo masculino também sofre com o machismo. Afinal, se os meninos são mais ativos e indisciplinados, seja pela formação cultural que os reprime menos do que às meninas, seja pelo danado do cromossomo Y, seja por tudo isso junto, eles estão perdendo o direito de serem moleques. O que é muito diferente de estar realmente doente e precisar de cuidados especiais. Em nome de um suposto problema de saúde, punimos quem, de repente, tem saúde e vitalidade sobrando. Essa postura deixa o verdadeiro doente, mais uma vez, sem remédio.