Estevão Seccatto Rocha*
A primeira livraria do Brasil data de 1792 (Paul Martim); 203 anos depois o primeiro e-commerce de livros do Brasil foi fundado (Booknet, em 1995), comprado pelo Submarino, em 1999. Passados 15 anos, o mercado de varejo físico de livros começou a declinar. As pessoas continuam lendo livros. Em 2020, os brasileiros compraram R$ 2,1 bilhões em livros. O canal de aquisição destes itens é que mudou. Uma fração considerável das livrarias físicas não conseguiu se adaptar, e está saindo de cena. Tal fato acontece em diversos setores, em empresas que falham em perceber mudanças de hábitos de consumo que afetam diretamente seus negócios. Uma pena.
A Laselva, que foi uma das maiores do Brasil (chegou a ter 80 lojas, com foco em pontos físicos em aeroportos), após não cumprir com seu Plano de Recuperação Judicial (“RJ”), protocolado em 2013, não demonstrando viabilidade econômico-financeira e tampouco social, teve em 2018 sua falência decretada. Cinco anos se passaram entre o pedido de RJ e a falência da empresa, cujos credores amargaram perdas de cerca de R$ 160 milhões (a massa falida tem valor irrisório). De lá pra cá, tivemos mais de mil livrarias fechadas no Brasil, e casos emblemáticos como Livraria Cultura e Saraiva, em RJs que se estendem desde 2018.
O varejo de livros com lojas físicas vem sobrevivendo com a ajuda de “aparelhos respiratórios”, mas não vai durar muito tempo. Não adianta. O canal de vendas mudou (boa parte das vendas de livros são feitas por e-commerce), os hábitos de consumo mudaram (kindle, e-books, audiobooks, podcasts), as fontes de informação mudaram (autores independentes, editoras pequenas, impressões on-demand, vídeos do YouTube, documentários do Netflix e outros streamings). As editoras (que recebem em média 30% do valor de um livro) também vêm sofrendo e, quando o modelo da simples leitura (ultrapassadíssimo na minha opinião) mudar para experimentação prática e realidade aumentada (comprovadamente incrementando a retenção de informações), o impacto será ainda maior. As editoras estão se preparando?
Nos casos da Cultura e Saraiva, os erros que levaram a este estado pré-falimentar são parecidos, com mais ou menos ponderação para alguns dos seguintes fatores: (i) uso de caixa com abertura/ manutenção de grandes pontos comerciais; (ii) autocanibalização causada por suas próprias lojas virtuais; (iii) precificação agressiva da Amazon (compra lotes com desconto em vez de consignação) e outros marketplaces; (iv) canal digital pouco explorado; (v) mix de produtos eletrônicos competindo com e-commerce (melhores preços online); (vi) insistência num modelo defasado.
A Saraiva (SLED4), cujas ações foram de R$ 44,0/ação em dez/2010 para atuais (22/10/21) R$ 0,3/ação (valor de mercado de R$ 26 milhões), possui dívida na RJ de R$ 330 milhões (50% bancos – destes, 85% Banco do Brasil – e 50% fornecedores) e dívida fora da RJ de R$ 160 milhões. Operacionalmente, a empresa não para de pé faz tempo. O último EBITDA positivo foi em 2017 (R$42 milhões), sendo negativo desde então, R$ 97 milhões em 2020, R$ 177 milhões em 2019 e em R$ 130 milhões em 2018. O Plano de RJ aprovado em fevereiro/21 prevê pagamentos com até 80% de haircut – deságio no valor da dívida – e alguns credores recebendo até 2048.
Segundo o último relatório do administrador judicial (do administrador judicial RV3, apresentado em outubro com informações acumuladas até agosto/21), a empresa teve receita liquida de R$ 7,3 milhões por mês em 2021, queda de 70% comparada ao mesmo período de 2020, sendo 85% de 38 lojas ativas e 15% via e-commerce, e EBITDA negativo de R$ 26,8 milhões acumulados até agosto de 2021 (EBITDA negativo acumulado de R$ 246,7 milhões nos últimos 12 meses). Eu me questiono o motivo pelo qual o e-commerce ainda permanece tão incipiente nas vendas da empresa, com manutenção do modelo físico como principal fonte de receita, carregando toda a estrutura inerente ao negócio físico. Nota-se um declínio de 86% da receita de e-commerce de 1S2020 para 1S2021, sem maiores explicações da gestão (dados do relatório da administração).
A Saraiva conta com algumas UPIs (Unidades Produtivas Isoladas – ativos que poderiam ser vendidos livres de riscos de sucessão), que foram a leilão em setembro/2021, a saber, algumas lojas físicas (com valor mínimo de R$ 113 milhões) e unidade de comércio eletrônico (valor mínimo de R$90 milhões). Não houve a habilitação de interessados para a aquisição das referidas UPIs no leilão, impossibilitando o cumprimento das obrigações contidas no Primeiro Aditamento ao PRJ. A empresa informa que irá apresentar um Segundo Aditamento ao PRJ, que deverá ser aprovado por nova Assembleia Geral de Credores. Ou seja, o processo se estenderá por mais tempo.
A Cultura (empresa privada da família Herz) enfrenta dificuldade desde 2014 (receita caiu de R$ 427 milhões naquele ano para R$ 270 milhões em 2018). Em 2017, recebeu R$ 130 milhões para assumir a Fnac (para logo depois fechar todas as unidades e a loja virtual). Em 2018, pediu RJ (R$ 285 milhões, sendo 75% das dívidas com fornecedores, o que torna a situação mais delicada ainda do que a Saraiva). Em 2020, vendeu a Estante Virtual por R$ 31 milhões para a Magalu (parte dos recursos para pagar credores). Em maio de 2021, teve novo Plano de RJ (“PRJ”) aprovado (até 80% de haircut e alguns credores recebendo até 2040), evitando pedidos de falências.
Apesar dos problemas já virem há sete anos, parte da “culpa” (e motivo pra novo Plano de RJ), assim como na Saraiva, foi atribuída ao fechamento de lojas durante a pandemia (segundo a gestão, parte da renda vinha de noites de autógrafos). A empresa possui hoje sete lojas físicas, o quadro de colaboradores foi reduzido de 929 em 2018 para 195 em junho 2021 (reduzindo também o apelo da contribuição do negócio como fim social).
Segundo o último relatório disponível do Administrador Judicial (A&M, com data de setembro/21 e dados de junho/2021), a empresa teve receita líquida média de R$ 2,6 milhões por mês em 2021 (91% livros/ 37% e-commerce), 56% menor que o mesmo período de 2020, e apresentou resultado operacional negativo de R$ 24,8 milhões, acumulado no primeiro semestre de 2021. Interessante observar que quase 50% das saídas de caixa são representadas pela folha de pagamentos. Não seria uma opção, talvez, fechar todas as lojas (stop-loss imediato), reduzir o pessoal ao mínimo, e focar 100% nas vendas online?
O déficit de caixa está sendo coberto com dívidas extraconcursais (obrigações contraídas depois do pedido de RJ) que, em teoria (existem particularidades), têm prioridade no recebimento no caso de falência. O passivo extraconcursal operacional já soma R$ 58,5 milhões e o financeiro (sem considerar partes relacionadas), R$ 49,6 milhões.
Se considerarmos os ativos totais da empresa, descontando os impostos a recuperar, o valor do ativo mal cobre o passivo extraconcursal. Ou seja, se a Cultura falir, os únicos que têm alguma chance de recuperar parte dos seus recursos são os credores que emprestaram recursos após a RJ. E nem estou considerando o tempo para o processo se desenrolar, os diretos legais de preferência nos recebimentos, a qualidade dos ativos, e o deságio dos ativos na venda em liquidação, estou partindo simplesmente do valor contábil pra facilitar a conta.
Não é à toa que os credores concursais de ambas, Saraiva e Cultura, aprovaram as alterações nos Planos de RJ. A melhor estratégia para tais credores é contar com o recurso das vendas das UPIs (no caso da Cultura parece-me que o que ficou de valor se restringe à marca), que seriam usadas para seu pagamento, e aprovar qualquer tipo de prolongamento (10 anos ou 100 anos, nestes casos, não farão diferença alguma).
Na Cultura, agora é observar se existirão financiadores dispostos a continuar aportando recursos na empresa, dado que o cenário de liquidação aponta para incapacidade adicional de qualquer tipo de alavancagem, e quanto tempo a empresa tem de fôlego para cobrir o furo de caixa, que soma R$ 6,0 mm/mês. A empresa tinha em junho/21, entre caixa, contas a receber e estoque o valor de R$ 12,3 milhões.
Na Saraiva, é preciso verificar qual será a proposta contida no Segundo Aditamento ao PRJ e se os credores aprovarão o mesmo (provavelmente sim), entender se existe ainda possibilidade (ou compradores por novo valor mais baixo) de venda das UPIs, e se o plano de ação divulgado pela gestão será executado (soluções parecem muito óbvias para ainda não terem sido implementadas), revertendo a geração negativa de caixa que vem ocorrendo há 4 anos.
A presente análise foi realizada com informações disponíveis publicamente, sendo que uma avaliação bem mais aprofundada se faz necessária a credores e acionistas de ambas as empresas, a fim de auxiliar na tomada de decisões sobre a continuidade dos negócios.
*Estevão Seccatto Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX, diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Conselheiro de administração pelo IBGC. Assessorou mais de uma centena de empresas. www.seccatto.com