Conforme anunciou em entrevista recente, Paulo Cesar de Araújo pretende lançar em meados deste ano uma nova biografia de Roberto Carlos, já que seu primeiro trabalho está impedido de circular por causa de acordo entre a editora e o cantor. ??, então, momento oportuno para uma releitura de Roberto Carlos em detalhes, publicado em 2006 e logo recolhido. A menos que o autor recupere integralmente o livro proibido, mudando apenas o título, seu desaparecimento será uma perda irreparável não apenas aos interessados na vida e na carreira de Roberto Carlos, mas principalmente aos estudiosos da cultura brasileira. Certamente o livro interessa, em primeiro lugar, aos fãs do cantor. O estilo límpido e fluente, que parece corresponder às suas próprias canções, permite uma leitura agradável, quase musical, acessível a um amplo espectro de leitores. O livro traz também uma boa história da música jovem e da música popular dos últimos cinquenta anos, com os bastidores da indústria fonográfica e das emissoras de rádio e de televisão, além de uma variada galeria de perfis de músicos, produtores e profissionais da área cultural. Assim, o livro é referência para se compreender o contexto histórico e cultural em que figurou um fenômeno como Roberto Carlos. Quem já conhece o livro de Paulo Cesar de Araújo tem curiosidade de saber se ele foi efetivamente lido pelo biografado. Parece que essa tarefa ficou a cargo de advogados mal versados em assuntos não jurídicos, que se preocuparam em examinar passagens destacadas por algum secretário para decidir se elas eram ofensivas à figura de Roberto Carlos. Se isso for verdade, o Rei precisa fazer uma autocrítica e ler o livro. Certamente, descobrirá, com assombro, o quanto é ali enaltecido. Não pessoalmente, que não se trata apenas de um relato de sua vida particular, e sim como figura pública, representante de uma enorme fatia da cultura brasileira contemporânea. Se for isento e honesto, não deixará de se orgulhar do que encontrará no livro e certamente experimentará novas emoções, para usar um bordão caro à sua vida artística. O livro é composto de quinze alentados capítulos, que procuram apresentar o artista em todas as dimensões de sua carreira, do início tímido na cidade natal à consagração como maior artista popular do Brasil, passando pelo namoro com a Bossa Nova, a renovação do rock nacional, o lançamento de tendências e o rigor com que cuida de suas canções, desde a composição até os arranjos e gravações. O autor não discute Roberto Carlos, apenas documenta, combinando as informações colhidas em 175 entrevistas com a leitura atenta de inúmeros documentos para apresentar um perfil abalizado do biografado. Assume a perspectiva do fã que acompanhou o ídolo desde a infância e só não colocou o cantor entre os entrevistados para o livro porque foi impedido. Aliás, ele sentiu-se excluído por Roberto Carlos duas vezes: no show em Vitória da Conquista, aos 10 anos, quando não tinha dinheiro para pagar o ingresso, e na preparação do livro, aos 46 anos, quando o artista se recusou a conceder-lhe entrevista. Mas isso não impede que se ouça sua voz em todo o livro, pois o imenso material recolhido ao longo de quinze anos de pesquisa é farto o suficiente para dar inclusive uma voz mais equilibrada ao ídolo, que fala na condição de um ícone público e não como alguém que arranja a imagem que gostaria de fixar para a posteridade.
A VIDA DO ARTISTA O que teria desagradado Roberto Carlos no livro? Provavelmente fatos íntimos que ele não gostaria de compartilhar. No conjunto, são informações pitorescas que enriquecem o perfil do artista, mas pinçadas aqui e ali e apresentadas de forma isolada podem adquirir uma dimensão negativa que, de fato, não têm. ?? o caso da revelação de que o cantor costuma xingar ao se curvar para agradecer os aplausos ou para manifestar insatisfação com algum detalhe técnico de um show (p.259). Há também o relato de seus namoros que pode que soar como indiscrição. Os leitores, porém, gostarão de saber que, tão assediado por fãs de todas as classes sociais, Roberto fez também suas escolhas e conheceu ícones como Maysa (p.304) e Sonia Braga (p.305). Nesse sentido, cabe observar que todos os indivíduos colecionam episódios que não gostariam de recordar, muito menos publicamente. E Roberto Carlos tem muitos deles, o que pode explicar o desconforto com a sua menção. ?? esse o caso, talvez, do tratamento dado à questão política, uma vez que a turma de Roberto Carlos é apresentada como despolitizada (p.320-1). De todo modo, o cantor não é considerado alienado. Ao contrário, o livro desfaz a ideia de que ele era descompromissado socialmente e o coloca na vanguarda de hábitos e atitudes comportamentais que chegaram a incomodar a censura. Isso vai sendo demonstrado na análise de várias canções, que abordam desde a irreverência juvenil até questões mais gerais, como a discriminação social e a preservação ambiental. Nessa linha, é emocionante o relato de seu encontro com Caetano Veloso no exílio para mostrar a música Debaixo dos caracóis de seus cabelos, numa clara solidariedade ao compositor baiano naquele momento tenebroso da política brasileira (p.321-2). Emocionam ainda mais passagens sobre a vida pessoal de Roberto Carlos, como a história de seus casamentos. Inicialmente, com Nice, uma mulher separada e mãe de uma garota. Depois, com Miriam Rios, cujo desenrolar assume ares de um conto de fadas, com os momentos de surpresa e deslumbramento vividos pelos familiares e amigos da atriz, ainda pouco conhecida na época. O grande destaque, porém, fica para o casamento com Maria Rita. Tanto pela intensidade quanto pelo ritual, o amor entre os dois é comparado ao de John Lennon e Yoko Ono. Em ambos, a repercussão na criação musical foi marcante. Na verdade, fatos da vida pessoal do cantor comparecem no livro porque são em grande parte a inspiração para suas composições, a exemplo da canção feita para uma namorada distante, com a qual poderia ter-se casado se ela não tivesse demorado tanto para retornar de uma viagem ao exterior. A canção só deixou de ser cantada durante longo tempo por causa de uma mania de Roberto Carlos, que depois foi identificada como TOC ??? Transtorno Obsessivo Compulsivo. A doença o impedia de pronunciar determinadas palavras que ele considerava negativas. Sobre isso, o autor diz que cantar Quero que vá tudo pro inferno é um medo que precisa ser vencido, pois não é “apenas mais um hit do cantor, e sim a canção mais importante de sua carreira” (p.459). Essa informação, evidentemente, deverá ser atualizada depois que, no show anual de 2016, o artista, já curado da doença, voltou a cantar seu grande sucesso.
UM FEN??MENO CULTURAL O que mais interessa no livro, porém, é a história do artista no âmbito da cultura brasileira. Segundo o autor, “Roberto Carlos é um fenômeno de nossa cultura. Não se pode falar em Brasil, verdadeiramente, sem se falar em Roberto Carlos ??? poucos países no mundo possuem um artista, cantor e compositor tão entranhado no coração de seu povo, e por tantas décadas” (p.343). Essa convicção é baseada na variada atuação do artista e principalmente no seu imenso repertório musical, em grande parte de sua própria autoria ou em parceria com Erasmo Carlos. Para começar, Roberto Carlos é considerado pioneiro na produção do rock no Brasil (p.115). Não apenas porque cantou e compôs rock, mas porque foi responsável por inovações do gênero entre nós. Os arranjos de suas gravações iniciais, por exemplo, substituem o saxofone pelo órgão elétrico, instaurando uma novidade que só mais tarde se generalizaria. Sem contar sua atuação no âmbito da música brasileira em geral, da MPB ao iê, iê, iê (p.172). Como se sabe, no início da carreira, ele cantava Bossa Nova, imitando João Gilberto, e se tornou o rei da juventude quando passou a cantar rock. Para se compreender a dimensão de seu sucesso nessa fase, basta ler o Capítulo 5, que trata de sua atuação no Programa Jovem Guarda, da TV Record. Assim, o cantor e compositor foi evoluindo e, apesar da decantada rivalidade entre a Jovem Guarda e a turma da MPB, esteve muito mais próximo dos principais representantes desta do que se imagina. Que se considere, a esse propósito, a importância para a carreira de Gal Costa de Meu nome é Gal, canção composta por ele em parceria com Erasmo Carlos para combater diversos preconceitos e gravada pela cantora em seu segundo álbum (p.281). Por essa e por outras razões, Roberto Carlos deveria emoldurar e exibir o capítulo que trata de sua relação com a MPB na década de 1960. Esses aspectos comprovam que quase nada no livro é exclusivamente Roberto Carlos. Ao adotar um estilo digressivo, adequado para contextualizar o fenômeno artístico, o autor vai puxando variados fios da história musical brasileira. Antes, por exemplo, de abordar a longevidade da parceria com Erasmo Carlos (p.226), traça o perfil de parcerias históricas da canção popular. E mesmo quando explica o processo de criação da dupla, aproveita para falar da carreira difícil de Erasmo Carlos (digressão), passa à homenagem que ele faz a Newton Mendonça e trata, a seguir, da história da parceria deste com Tom Jobim (digressão da digressão). Dessa forma, vai estabelecendo no conjunto um rico panorama do mundo musical da época. Ouvindo as gravações de Roberto Carlos ou assistindo a seus shows, não se tem ideia exata do trabalho de criação e produção artística para se chegar a esses resultados. Nesse sentido, é valiosa, por exemplo, a apresentação dos bastidores da gravação de seus discos, no Brasil ou nos E.U.A., com a escolha do estúdio, dos músicos e arranjadores, dos técnicos de gravação etc. Assim como é esclarecedora a descrição do rigor do artista na produção dos espetáculos, da escolha de arranjadores e músicos aos detalhes de palco. Sobre esse aspecto, é exemplar sua estreia no Canecão, em 1970, que é descrita sob a ótica do maestro Chiquinho de Morais (p.242). A base desse desempenho, no entanto, está nas próprias canções. Sobre isso, o livro dá grande destaque para a força e a qualidade do repertório de Roberto Carlos. Além do estudo da música, dos arranjos e da execução, apresenta uma minuciosa análise das letras, de que é exemplo acabado o Capítulo 9 (p.265), no qual descreve a criteriosa escolha dos parceiros e a afinação com o principal deles, Erasmo Carlos. Juntos, criaram um repertório que contempla todos os assuntos de destaque em cada momento de sua carreira. Ao longo do livro, várias canções são analisadas, com informações sobre sua origem, a composição, a gravação, a repercussão e outros aspectos contextuais. De todas elas, Quero que vá tudo pro inferno é a mais evocada. Sua contextualização e análise (138 e seg.) servem de fio condutor para se compreender o processo criativo do artista e, principalmente, seu lugar na cultura brasileira, em termos estéticos, sociais e políticos. De sua fase religiosa são destacados sucessos como Jesus Cristo e Nossa Senhora, além de Amigo, usada para saudar o Papa, primeiro no México e depois no Brasil (p.461). Embora não discuta o trabalho de Roberto Carlos, o autor não deixa de sinalizar suas tendências principais nem de abordar aspectos que, para muitos, constituiriam fragilidades. Após percorrer praticamente todas as canções de temática religiosa e amorosa, faz considerações sobre o “dogmatismo religioso” do artista, que teria cessado com a morte de sua mulher Maria Rita, dando lugar ao “dogmatismo amoroso”.
UM LIVRO INJUSTI??ADO Por todos os aspectos apontados, a retirada de circulação do livro de Paulo Cesar de Araújo foi uma decisão lamentável, que privou uma grande legião de fãs de Roberto Carlos de um contato aprofundado com a vida do ídolo. Certamente o livro exerce um fascínio especial nos mais velhos, que viveram a parte externa da história nele narrada e agora podem ter acesso a informações mais completas e sistematizadas daqueles momentos. Mas esses mesmos detalhes podem ser a base para interessar também leitores mais jovens que, graças ao processo de escrita do livro, têm a oportunidade de mergulhar num dos momentos mais efervescentes da cultura popular brasileira, com informações adicionais sobre diversos temas correlatos, como o festival de San Remo, o universo da Bossa Nova e da MPB, bem como a história dos musicais, do disco, do rádio, dos costumes juvenis e da vida de vários outros artistas do período. Por fim, vale chamar a atenção para um argumento equivocado que o cantor utilizou para justificar a proibição do livro: sua vida cabe a ele próprio contar. Conforme se pode perceber, não se trata de sua vida pessoal, e sim da vida do artista Roberto Carlos. Ele, sem dúvida, poderá escrever sua autobiografia, que será lida principalmente pelos fãs interessados em outros detalhes e confissões, mas dificilmente se aproximará dos resultados alcançados pelo autor de Roberto Carlos em detalhes, principalmente porque ele não é historiador nem crítico musical. E uma das linhas fortes do livro é constituída justamente de minuciosas contextualizações e análises de cada sucesso de sua carreira. Trata-se de um livro escrito por um admirador que cresceu acompanhando o cantor, condição, porém, que não impede o autor de elaborar um perfil amplo do artista e de seu entorno, dizendo coisas que o próprio biografado talvez não dissesse, ou por não se lembrar, ou por pudor, ou por não julgar importantes sob qualquer ponto de vista. Quando se fala de Roberto Carlos, pode haver uma ou outra divergência, mas a maioria do público gosta de suas canções. Durante mais de meio século de carreira, o artista acabou se tornando uma espécie de unanimidade nacional. Ao contrário do que prega na famosa canção, porém, ele não é aquele poço de emoções. Tem também razões para ser cioso de seu trabalho e de sua imagem. Pelo menos, é o que se conclui de sua persistência na proibição de um livro que conta, de forma original e envolvente, sua história pessoal e artística. Roberto Carlos em detalhes é um trabalho tão rico e documentado que se tornará referência obrigatória até mesmo para quem vier, no futuro, a escrever a biografia “autorizada” do artista.
Benedito Antunes é professor de Literatura Brasileira da Unesp de Assis.
As emoções e as razões de Roberto Carlos
Conforme anunciou em entrevista recente, Paulo Cesar de Araújo pretende lançar em meados deste ano uma nova biografia de Roberto Carlos, já que seu primeiro trabalho está impedido de circular por causa de acordo entre a editora e o cantor. ??, então, momento oportuno para uma releitura de Roberto Carlos em detalhes, publicado em 2006 e logo recolhido. A menos que o autor recupere integralmente o livro proibido, mudando apenas o título, seu desaparecimento será uma perda irreparável não apenas aos interessados na vida e na carreira de Roberto Carlos, mas principalmente aos estudiosos da cultura brasileira. Certamente o livro interessa, em primeiro lugar, aos fãs do cantor. O estilo límpido e fluente, que parece corresponder às suas próprias canções, permite uma leitura agradável, quase musical, acessível a um amplo espectro de leitores. O livro traz também uma boa história da música jovem e da música popular dos últimos cinquenta anos, com os bastidores da indústria fonográfica e das emissoras de rádio e de televisão, além de uma variada galeria de perfis de músicos, produtores e profissionais da área cultural. Assim, o livro é referência para se compreender o contexto histórico e cultural em que figurou um fenômeno como Roberto Carlos. Quem já conhece o livro de Paulo Cesar de Araújo tem curiosidade de saber se ele foi efetivamente lido pelo biografado. Parece que essa tarefa ficou a cargo de advogados mal versados em assuntos não jurídicos, que se preocuparam em examinar passagens destacadas por algum secretário para decidir se elas eram ofensivas à figura de Roberto Carlos. Se isso for verdade, o Rei precisa fazer uma autocrítica e ler o livro. Certamente, descobrirá, com assombro, o quanto é ali enaltecido. Não pessoalmente, que não se trata apenas de um relato de sua vida particular, e sim como figura pública, representante de uma enorme fatia da cultura brasileira contemporânea. Se for isento e honesto, não deixará de se orgulhar do que encontrará no livro e certamente experimentará novas emoções, para usar um bordão caro à sua vida artística. O livro é composto de quinze alentados capítulos, que procuram apresentar o artista em todas as dimensões de sua carreira, do início tímido na cidade natal à consagração como maior artista popular do Brasil, passando pelo namoro com a Bossa Nova, a renovação do rock nacional, o lançamento de tendências e o rigor com que cuida de suas canções, desde a composição até os arranjos e gravações. O autor não discute Roberto Carlos, apenas documenta, combinando as informações colhidas em 175 entrevistas com a leitura atenta de inúmeros documentos para apresentar um perfil abalizado do biografado. Assume a perspectiva do fã que acompanhou o ídolo desde a infância e só não colocou o cantor entre os entrevistados para o livro porque foi impedido. Aliás, ele sentiu-se excluído por Roberto Carlos duas vezes: no show em Vitória da Conquista, aos 10 anos, quando não tinha dinheiro para pagar o ingresso, e na preparação do livro, aos 46 anos, quando o artista se recusou a conceder-lhe entrevista. Mas isso não impede que se ouça sua voz em todo o livro, pois o imenso material recolhido ao longo de quinze anos de pesquisa é farto o suficiente para dar inclusive uma voz mais equilibrada ao ídolo, que fala na condição de um ícone público e não como alguém que arranja a imagem que gostaria de fixar para a posteridade.
A VIDA DO ARTISTA O que teria desagradado Roberto Carlos no livro? Provavelmente fatos íntimos que ele não gostaria de compartilhar. No conjunto, são informações pitorescas que enriquecem o perfil do artista, mas pinçadas aqui e ali e apresentadas de forma isolada podem adquirir uma dimensão negativa que, de fato, não têm. ?? o caso da revelação de que o cantor costuma xingar ao se curvar para agradecer os aplausos ou para manifestar insatisfação com algum detalhe técnico de um show (p.259). Há também o relato de seus namoros que pode que soar como indiscrição. Os leitores, porém, gostarão de saber que, tão assediado por fãs de todas as classes sociais, Roberto fez também suas escolhas e conheceu ícones como Maysa (p.304) e Sonia Braga (p.305). Nesse sentido, cabe observar que todos os indivíduos colecionam episódios que não gostariam de recordar, muito menos publicamente. E Roberto Carlos tem muitos deles, o que pode explicar o desconforto com a sua menção. ?? esse o caso, talvez, do tratamento dado à questão política, uma vez que a turma de Roberto Carlos é apresentada como despolitizada (p.320-1). De todo modo, o cantor não é considerado alienado. Ao contrário, o livro desfaz a ideia de que ele era descompromissado socialmente e o coloca na vanguarda de hábitos e atitudes comportamentais que chegaram a incomodar a censura. Isso vai sendo demonstrado na análise de várias canções, que abordam desde a irreverência juvenil até questões mais gerais, como a discriminação social e a preservação ambiental. Nessa linha, é emocionante o relato de seu encontro com Caetano Veloso no exílio para mostrar a música Debaixo dos caracóis de seus cabelos, numa clara solidariedade ao compositor baiano naquele momento tenebroso da política brasileira (p.321-2). Emocionam ainda mais passagens sobre a vida pessoal de Roberto Carlos, como a história de seus casamentos. Inicialmente, com Nice, uma mulher separada e mãe de uma garota. Depois, com Miriam Rios, cujo desenrolar assume ares de um conto de fadas, com os momentos de surpresa e deslumbramento vividos pelos familiares e amigos da atriz, ainda pouco conhecida na época. O grande destaque, porém, fica para o casamento com Maria Rita. Tanto pela intensidade quanto pelo ritual, o amor entre os dois é comparado ao de John Lennon e Yoko Ono. Em ambos, a repercussão na criação musical foi marcante. Na verdade, fatos da vida pessoal do cantor comparecem no livro porque são em grande parte a inspiração para suas composições, a exemplo da canção feita para uma namorada distante, com a qual poderia ter-se casado se ela não tivesse demorado tanto para retornar de uma viagem ao exterior. A canção só deixou de ser cantada durante longo tempo por causa de uma mania de Roberto Carlos, que depois foi identificada como TOC ??? Transtorno Obsessivo Compulsivo. A doença o impedia de pronunciar determinadas palavras que ele considerava negativas. Sobre isso, o autor diz que cantar Quero que vá tudo pro inferno é um medo que precisa ser vencido, pois não é “apenas mais um hit do cantor, e sim a canção mais importante de sua carreira” (p.459). Essa informação, evidentemente, deverá ser atualizada depois que, no show anual de 2016, o artista, já curado da doença, voltou a cantar seu grande sucesso.
UM FEN??MENO CULTURAL O que mais interessa no livro, porém, é a história do artista no âmbito da cultura brasileira. Segundo o autor, “Roberto Carlos é um fenômeno de nossa cultura. Não se pode falar em Brasil, verdadeiramente, sem se falar em Roberto Carlos ??? poucos países no mundo possuem um artista, cantor e compositor tão entranhado no coração de seu povo, e por tantas décadas” (p.343). Essa convicção é baseada na variada atuação do artista e principalmente no seu imenso repertório musical, em grande parte de sua própria autoria ou em parceria com Erasmo Carlos. Para começar, Roberto Carlos é considerado pioneiro na produção do rock no Brasil (p.115). Não apenas porque cantou e compôs rock, mas porque foi responsável por inovações do gênero entre nós. Os arranjos de suas gravações iniciais, por exemplo, substituem o saxofone pelo órgão elétrico, instaurando uma novidade que só mais tarde se generalizaria. Sem contar sua atuação no âmbito da música brasileira em geral, da MPB ao iê, iê, iê (p.172). Como se sabe, no início da carreira, ele cantava Bossa Nova, imitando João Gilberto, e se tornou o rei da juventude quando passou a cantar rock. Para se compreender a dimensão de seu sucesso nessa fase, basta ler o Capítulo 5, que trata de sua atuação no Programa Jovem Guarda, da TV Record. Assim, o cantor e compositor foi evoluindo e, apesar da decantada rivalidade entre a Jovem Guarda e a turma da MPB, esteve muito mais próximo dos principais representantes desta do que se imagina. Que se considere, a esse propósito, a importância para a carreira de Gal Costa de Meu nome é Gal, canção composta por ele em parceria com Erasmo Carlos para combater diversos preconceitos e gravada pela cantora em seu segundo álbum (p.281). Por essa e por outras razões, Roberto Carlos deveria emoldurar e exibir o capítulo que trata de sua relação com a MPB na década de 1960. Esses aspectos comprovam que quase nada no livro é exclusivamente Roberto Carlos. Ao adotar um estilo digressivo, adequado para contextualizar o fenômeno artístico, o autor vai puxando variados fios da história musical brasileira. Antes, por exemplo, de abordar a longevidade da parceria com Erasmo Carlos (p.226), traça o perfil de parcerias históricas da canção popular. E mesmo quando explica o processo de criação da dupla, aproveita para falar da carreira difícil de Erasmo Carlos (digressão), passa à homenagem que ele faz a Newton Mendonça e trata, a seguir, da história da parceria deste com Tom Jobim (digressão da digressão). Dessa forma, vai estabelecendo no conjunto um rico panorama do mundo musical da época. Ouvindo as gravações de Roberto Carlos ou assistindo a seus shows, não se tem ideia exata do trabalho de criação e produção artística para se chegar a esses resultados. Nesse sentido, é valiosa, por exemplo, a apresentação dos bastidores da gravação de seus discos, no Brasil ou nos E.U.A., com a escolha do estúdio, dos músicos e arranjadores, dos técnicos de gravação etc. Assim como é esclarecedora a descrição do rigor do artista na produção dos espetáculos, da escolha de arranjadores e músicos aos detalhes de palco. Sobre esse aspecto, é exemplar sua estreia no Canecão, em 1970, que é descrita sob a ótica do maestro Chiquinho de Morais (p.242). A base desse desempenho, no entanto, está nas próprias canções. Sobre isso, o livro dá grande destaque para a força e a qualidade do repertório de Roberto Carlos. Além do estudo da música, dos arranjos e da execução, apresenta uma minuciosa análise das letras, de que é exemplo acabado o Capítulo 9 (p.265), no qual descreve a criteriosa escolha dos parceiros e a afinação com o principal deles, Erasmo Carlos. Juntos, criaram um repertório que contempla todos os assuntos de destaque em cada momento de sua carreira. Ao longo do livro, várias canções são analisadas, com informações sobre sua origem, a composição, a gravação, a repercussão e outros aspectos contextuais. De todas elas, Quero que vá tudo pro inferno é a mais evocada. Sua contextualização e análise (138 e seg.) servem de fio condutor para se compreender o processo criativo do artista e, principalmente, seu lugar na cultura brasileira, em termos estéticos, sociais e políticos. De sua fase religiosa são destacados sucessos como Jesus Cristo e Nossa Senhora, além de Amigo, usada para saudar o Papa, primeiro no México e depois no Brasil (p.461). Embora não discuta o trabalho de Roberto Carlos, o autor não deixa de sinalizar suas tendências principais nem de abordar aspectos que, para muitos, constituiriam fragilidades. Após percorrer praticamente todas as canções de temática religiosa e amorosa, faz considerações sobre o “dogmatismo religioso” do artista, que teria cessado com a morte de sua mulher Maria Rita, dando lugar ao “dogmatismo amoroso”.
UM LIVRO INJUSTI??ADO Por todos os aspectos apontados, a retirada de circulação do livro de Paulo Cesar de Araújo foi uma decisão lamentável, que privou uma grande legião de fãs de Roberto Carlos de um contato aprofundado com a vida do ídolo. Certamente o livro exerce um fascínio especial nos mais velhos, que viveram a parte externa da história nele narrada e agora podem ter acesso a informações mais completas e sistematizadas daqueles momentos. Mas esses mesmos detalhes podem ser a base para interessar também leitores mais jovens que, graças ao processo de escrita do livro, têm a oportunidade de mergulhar num dos momentos mais efervescentes da cultura popular brasileira, com informações adicionais sobre diversos temas correlatos, como o festival de San Remo, o universo da Bossa Nova e da MPB, bem como a história dos musicais, do disco, do rádio, dos costumes juvenis e da vida de vários outros artistas do período. Por fim, vale chamar a atenção para um argumento equivocado que o cantor utilizou para justificar a proibição do livro: sua vida cabe a ele próprio contar. Conforme se pode perceber, não se trata de sua vida pessoal, e sim da vida do artista Roberto Carlos. Ele, sem dúvida, poderá escrever sua autobiografia, que será lida principalmente pelos fãs interessados em outros detalhes e confissões, mas dificilmente se aproximará dos resultados alcançados pelo autor de Roberto Carlos em detalhes, principalmente porque ele não é historiador nem crítico musical. E uma das linhas fortes do livro é constituída justamente de minuciosas contextualizações e análises de cada sucesso de sua carreira. Trata-se de um livro escrito por um admirador que cresceu acompanhando o cantor, condição, porém, que não impede o autor de elaborar um perfil amplo do artista e de seu entorno, dizendo coisas que o próprio biografado talvez não dissesse, ou por não se lembrar, ou por pudor, ou por não julgar importantes sob qualquer ponto de vista. Quando se fala de Roberto Carlos, pode haver uma ou outra divergência, mas a maioria do público gosta de suas canções. Durante mais de meio século de carreira, o artista acabou se tornando uma espécie de unanimidade nacional. Ao contrário do que prega na famosa canção, porém, ele não é aquele poço de emoções. Tem também razões para ser cioso de seu trabalho e de sua imagem. Pelo menos, é o que se conclui de sua persistência na proibição de um livro que conta, de forma original e envolvente, sua história pessoal e artística. Roberto Carlos em detalhes é um trabalho tão rico e documentado que se tornará referência obrigatória até mesmo para quem vier, no futuro, a escrever a biografia “autorizada” do artista.
Benedito Antunes é professor de Literatura Brasileira da Unesp de Assis.