“Wright Mill disse, certa vez, que o nosso mundo é uma galera onde todos remam com vigor, imprimindo velocidade cada vez maior ao barco. Só que ninguém tem ideia alguma da direção para onde ele está indo. Achei essa uma boa metáfora para a situação do Brasil, com apenas dois acréscimos. Primeiro: há um rombo no porão, a água sobe rapidamente, o casco se inunda, vai haver naufrágio. Segundo: na cabine de comando ninguém parece se preocupar com isso. O comandante faz seguidos discursos tranquilizantes, denunciando os boatos alarmistas que sobem dos porões e garantindo que não há razões para pessimismo. A viagem, ele reassegura, transcorre segundo o previsto, o que permite que as festas continuem sem interrupção nos salões de baile. Enquanto isso, parece que os oficiais têm uma única preocupação na cabeça: o que fazer para subir um degrau na hierarquia do poder. No fundo, todos desejariam ocupar a posição do comandante. Para conter a gritaria que sobe lá de baixo, gritos que mais parecem com gargarejos, gargantas já inundadas de água, o comando despacha para baixo suas forças de segurança, com a missão de restabelecer a ordem – como se o perigo estivesse nos gritos do que se afogam e não na água que vai entrando…

Ouvem-se as mais fantásticas promessas: refeições gratuitas para a terceira classe, estabilidade de emprego para os que trabalham nas caldeiras, novos elevadores ligando a primeira classe aos porões, pintura colorida nos salões de festas – tudo isso em meio a uma farta distribuição de sanduíches e saquinhos de pipoca. O clima é festivo, e muitos chegam mesmo a se embebedar com caipirinhas, esquecendo-se do único fato que importa: o navio está afundando…”

Esse trecho faz parte do livro “Conversas sobre Política”, do filósofo, psicanalista e educador Rubem Alves (1933-2014). Foi publicado em 2002, mas parece ter sido escrito ontem. Vinte anos depois, a metáfora continua válida. É um retrato perfeito do Brasil de hoje, preocupado com o ano eleitoral, porém sem resolver seus problemas estruturais.

Como diz o texto de Rubem Alves, é um período de fartas promessas, enquanto a população amarga inflação alta – muito acima da meta projetada pelo governo e com média de 5,6% nos últimos 15 anos -, desemprego recorde e a fome, que já atinge mais de 19 milhões de brasileiros.

A água está inundando o navio há tempos. O rombo é antigo, e vem aumentando. O país paga caro hoje pelos erros acumulados ao longo dos últimos 33 anos. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 o país não tem um Plano de Metas para nortear seu desenvolvimento. Com isso, a nau brasilis perdeu o rumo e navega à deriva.

Corroída pela corrupção endêmica que custa ao país mais de R$ 200 milhões por ano e pela impunidade, a nação ainda se tornou um paraíso de privilégios – na contramão do mundo tem cerca de 55.000 gozando de foro por prerrogativa de função -, alimentando a sensação generalizada de que o crime compensa.

Além disso, vivemos num verdadeiro manicômio tributário, com um sistema arrecadatório injusto e regressivo, com elevadíssima incidência sobre os produtos de consumo, o que contribui para a fábrica de pobreza e a desigualdade brasileira. Igualmente injusta é a repartição das fontes de receita, cujo resultado é a União arrecadando muito e os municípios à míngua, com poucos recursos e enormes demandas a atender. Ignora-se, solenemente, que o cidadão nasce, vive e morre no município.

A necessidade de uma reforma política é ignorada, apesar das evidências de que o instituto da reeleição não deu certo e precisa ser revisto, talvez com a garantia de um mandato maior. Da mesma forma, mais do que promessas o Brasil precisa que a Constituição seja cumprida, notadamente quanto à aplicação de recursos para a diminuição das grandes desigualdades regionais que geram brasileiros de classes distintas de acordo com seu estado de nascimento. Vivemos uma espécie de síndrome do G, isto é, os governantes confundem geografia com genética. Acreditam que o cidadão, simplesmente pelo fato de nascer na região Norte ou Nordeste, é menos capaz e mais dependente de auxílios financeiros, necessitando de menos serviços de saúde, educação e investimentos públicos destinados a melhorar a qualidade de vida. Trata-se de um olhar preconceituoso e, pior, de violação ao artigo 3º, inciso III da Constituição, que define como um dos objetivos fundamentais da República erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

O país, lamentavelmente, insiste no equivocado modelo pelo qual a União é uma repartidora de receitas com absoluta discricionariedade, destinando a seu bel prazer, via renúncia fiscal, mais de R$ 320 bilhões por ano, montante equivalente a 4% do PIB nacional.  Além disso, mantem uma visão estreita ao não enxergar a Floresta Amazônica como um imenso potencial econômico. Basta que seja explorada de forma sustentável, mantendo as árvores em pé, negociando créditos de carbono, exportando peixes e frutas tropicais, coibindo a exploração ilegal e o contrabando de madeira, de ouro e outros minerais, bem como a expansão irrefreada das áreas de pastagem extensivas (mas confinadas) às custas da derrubada da floresta.

Há muitos problemas estruturais a serem enfrentados. Para isso, é preciso olhar para o buraco no casco em vez de buscar medidas paliativas como retirar a água que invade o navio. Não é o clima de campanha eleitoral – com a surrada exposição dourada de realizações e promessas milagrosas – a solução que a nação precisa. Novamente, o texto antigo de Rubem Alves é atual: “Confesso que sinto um clima um tanto apocalíptico: uma catástrofe que se aproxima. Clima de “últimos dias” – como se um grave julgamentos estivesse se aproximando para um país que não aprendeu as lições da história e se deixou fascinar pelas tentações do demônio. “O importante é levar vantagem” – é isso que o Tentador tem estado dizendo sem parar; e enquanto se celebram as pequenas vantagens individuais ou de partido, o navio continua a afundar”.

Convém atentar para a advertência do filósofo mineiro, explicitada na mesma obra: “A opção com que se defronta o povo do Brasil, neste momento de eleição, é precisamente esta; o engodo dos que prometem todas as coisas, a fim de subir na hierarquia do poder, e o sóbrio realismo dos que nada prometem à guisa de vantagens, por saber que não haverá vantagens para ninguém se o navio afundar. A esperança é que o povo prefira a vida ao engodo que se lhe oferece.”

 

**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor do livro “Brasil, um país à deriva”.