No primeiro volume da sua História da Sexualidade, que tem por subtítulo A vontade do saber (1976), Michel Foucault coloca uma tese original sobre a repressão sexual, colocando-se na contracorrente de diversas teorias, tendo maior abrangência, as que estavam em voga, as ideologias da liberação, o freud-marxismo de Reich e Marcuse.
Sendo vistas como teorias do desejo, que em que pesem suas diferenças, convergem em torno da hipótese de que a sexualidade moderna foi objeto de uma progressiva e sistemática repressão nas sociedades burguesas, após um período de razoável liberalidade. Foucault quando fala em repressão sexual, postula a hipótese de que o reprimir seria apenas uma peça de um dispositivo mais amplo e complexo de incitação e colocação do sexo em discurso pelo poder. Em resumo, trata-se de circunscrever o regime poder-saber-prazer que sustenta o funcionamento e a razões do discurso sobre a sexualidade humana e que tem como um de seus traços característicos a alegação de que somos reprimidos sexualmente, incentivando-nos a buscar uma verdade inscrita no sexo que supostamente nos libertaria, porém, tende-se no caso de uma repressão sexual alegada e feita por uma instituição religiosa o cuidado para não conturbar os preceitos, respeitando a fé individual ou coletiva, que sobrepassa a questão do prazer, pois se revela um fato moderante. O questionar sobre as verdades, pode se tornar algo inquietante ou muitas vezes obscuro, pois desvincular religião e ciência para certos membros, fiéis participantes, assíduos no encontro com o divino tende-se a ser improvável, pois o caráter da verdade ensinada por homens de respeito, se torna dogma na vida de um praticante que busca no ensino uma rota para o caminho certo ou a luz no fim do túnel, contrapondo as verdades do prazer, do sexo. Por conseguinte, o sexo não deve ser regulado por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, muito menos temos nele o prazer considerado segundo critérios de utilidade. Ao contrário, o prazer é tomado em relação a si mesmo de acordo com sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas ressonâncias no corpo e na alma. Mesmo que para Foucault, ao dizer que nossa civilização foi a única a praticar uma ciência sexual, desenvolvendo processos para revelar a verdade do sexo, vemos até hoje um tabu formulado a séculos na igreja mórmon que retrai seus seguidores dos prazeres sexuais, conotando tais prazeres, como devaneios para o pecado.
Foucault desnuda a razão e a sociedade secularizada, sendo essa cárcere dos membros que a erigiu. Claro que sua intenção não é retroceder, pelo contrário, Foucault redefine o saber aumentando a abrangência científica de discursos até então marginalizados. O biopoder e o pós- modernismo epistemológico de Foucault emerge diante do “boom” das metateorias – Marx, Freud, etc. – do século XIX. Essa mudança de pensamento, que para marxistas ortodoxos se caracteriza em um reconhecimento tácito do “triunfo” neoliberal, é vista pelos pós-modernos e pelos seus adeptos como uma necessária recodificação dos campos e fronteiras do saber. Os anseios modernistas, nos quais a fragmentação e a busca pelo sentido mor perdido causam uma angustia asfixiante na construção da ciência, são agora celebrados como o próprio signo do homem contemporâneo. O que angustiava agora se tornou a descoberta. Compreender a natureza social é mergulhar sem receios em um fluxo ininterrupto de estilos exauridos que se revitalizam em novas e infindáveis combinações. Tratar de temas como etnia, gênero e sexualidade são demandas do mundo contemporâneo que não podem ser negligenciadas pelo cientista social. Trabalhar o conceito de moral sexual repressiva de Reich, não impede, por exemplo, que se debruce e reconheça a mais-valia. O conhecimento não é e não pode ser bi polarizado sem que haja possibilidade de uma construção dialética entre seus fundamentos. Uma corrente do saber que se isola em sua “auto-suficiência” se torna uma voz que clama no deserto, ou seja, adquire caráter profético e messiânico desconsiderando as mudanças sociais, as particularidades históricas e os limites da ciência, por mais sofisticado que esta seja. Max Weber já alertara sobre os rumos de uma sociedade que pela maiêutica buscaria na ciência aporte para a dessacralização de problemas banais a dilemas milenarmente divagados pelo mundo metafísico. Weber chamaria essa tendência de “desencantamento do mundo”. Negar que a vida é dinâmica, para os pós- modernos, seria crer em superpoderes de um homem que não morre, não muda e por isso não renasce.
Em “A história da sexualidade”, Michel Foucault funda ou populariza a scientia sexualis (ciência do sexo). Ele demonstra que é irreal pensarmos que só após o iluminismo o sexo passou a de um tema tabu a um assunto a ser esquadrinhado. A partir dos séculos XV e XVI, com o advento do renascimento e a revigorarão dos ideais clássicos, inaugura-se um arquétipo sócio-cultural que possibilita, mesmo que em estágio embrionário, a discussão sobre o sexo e as ideias associadas a ele. Já no século XIX, Foucault demonstra que a discussão muda de esfera – do religioso ao médico científico-, com ares de neutralidade os médicos são por excelência os intérpretes da verdade sobre o sexo, diagnóstico que trazia amalgamado a sua essência um ranço de evolucionismo antropológico, racismo oficial e uma higienização moral constante que construía um elo entre a noção de patológico com o pecaminoso. Somente em Freud, há uma inversão nessa escala de potencias, o moralismo e os valores da consciência não atingem o homem em toda a sua constituição, ficam na camada superficial de nosso ser, o id que é onde reside nossos impulsos mais instintivos e agressivos, atinge de forma mais intensa nossa psique. O id funciona como uma espécie de memória inconsciente de nossos desejos sexuais que foram historicamente reprimidos. Reich, se utilizando desses conceitos freudianos, chega ao ponto de fazer uma analogia entre regimes políticos e essas camadas de nosso ser.
Foucault ao abranger o poder e seu alcance, nos obriga a uma revisão axiológica deste termo. Ao criar a noção do micro-poder, Foucault consegue reafirmar o caráter coercitivo do poder mesmo ultrapassando os limites clássicos criados pela ciência política. O exercício do poder não se restringe ao aparelho estatal e suas forças de manutenção (polícia). O poder são teias de relação que ocorrem no estado, mas também em relações moleculares do dia-dia. O poder em Foucault não se resume a uma luta de interesses entre dominantes e dominados, não é uma força dual, mas é uma construção humana em que todos os indivíduos e agentes participam, inclusive a instituição Estado.
Foucault ia na contramão do pensamento do professor Renato Janine,o qual restringia a duas formas os modos relevantes de concepção do mundo humano: céticos e libertadores. O estruturalismo de Foucault o fez avesso aos maniqueísmos ideológicos.
Foucault não legislou em causa própria, não fez de sua homossexualidade uma ode para criar uma teoria geral sobre a repressão sexual. Mas é inegável que Foucault fundou novos paradigmas para o campo do conhecimento social. O poder estatal não é uma derivação alheia, mas sim um subproduto de um ser chamado eu. Como diria Morin: “A marginalidade é o ponto de partida útil (não-suficiente) para a autonomia do pensamento”.
Renan Antônio da Silva: Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP – Araraquara. Realizou estágio doutoral com bolsa CAPES/PDSE junto ao Centro em Investigação Social (CIS/ISCTE-IUL), em Lisboa/Portugal, na linha temática Gênero, Sexualidades e interseccionalidade (2015-2016), sob processo de número 99999.006746/2015-02. ?? mestre em Desenvolvimento Regional, na linha temática Políticas Públicas (2014). ?? cientista social (2012).