Wander Pessoa (@pessoa_wander)

O Brasil é o único país do mundo que entrou no curso da história não através de um conflito, mas com uma dança entre indígenas e portugueses. O historiador e escritor Eduardo Bueno fez essa curiosa reflexão, ao analisar o conteúdo da “Carta a El Rei D. Manuel”, a carta de Pero Vaz de Caminha, que é para muitos a “certidão de nascimento” do Brasil. “A carta revela tudo aquilo que o Brasil prometeu que ia ser e nós não conseguimos cumprir”, reflete Bueno.

Pero Vaz de Caminha escreveu mais do que um simples relato daqueles dez dias passados pela esquadra de Cabral em Porto Seguro, na Bahia. Com riqueza de detalhes, ele conta como tupiniquins e portugueses celebraram esse improvável, mas amistoso encontro, dançando nas praias da Bahia, ao som de um acordeon tocado por um marinheiro. Era o prenúncio idealizado de uma Nação que, é claro, o Brasil não foi capaz de tornar realidade.
A carta de Caminha me veio à mente, com a proximidade do final da quarentena. Ainda vamos sentir saudades desse período, mesmo tendo sido um distanciamento capenga. A exemplo daqueles primeiros dez dias de convivência entre portugueses e índios, na aurora do Brasil, a pandemia representou outra possibilidade perdida. Dessa vez, para corrigir os rumos de uma sociedade imediatista e egocêntrica.

Embora o período de isolamento tenha provocado impactos positivos em algumas áreas, como o meio ambiente, com a redução da poluição ambiental, esse “novo normal” fez aflorar o melhor – mas principalmente o pior – dos indivíduos. E também escancarou o abismo da desigualdade social nessa imensa periferia que é o Brasil. Sim, um espírito de solidariedade esteve presente em ações solidárias, arrecadação de alimentos, mas foram iniciativas pontuais, localizadas e descoordenadas.

Passado o assombro inicial dos primeiros dias de isolamento, o que prevaleceu foi o egoísmo, o individualismo, a falta de solidariedade, a preocupação com o lucro acima de tudo, além das orientações contraditórias das várias esferas de governo. Ficarão para a eternidade frases que demonstraram total desprezo pela vida humana e apego único ao lucro e à vida boa. Deles, é claro. “Haverá mortes de CNPJ”, disse um engravatado. “As consequências serão muito maiores do que as pessoas que vão morrer”, disse outro dono de restaurante de bacanas. “E daí?”. Esse, então, dispensa comentários.

O país se aproxima de 30 mil mortos, mas a impressão que se tem é que a pandemia nem existe. Alguns se julgaram mais espertos que os outros porque abriram “meia porta” e burlaram a quarentena; outros fizeram questão de acreditar em “fake news”: para estes, o vírus é invenção chinesa, é armação do Doria, e assim por diante.

A “Carta a El Rei D. Manuel” fazia o elogio das diferenças e falava de tolerância: “E eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito (…) enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus”.

Quem a lê, hoje, tem a certeza que tinha tudo para dar certo, nesse novo território. Talvez daqui a muito tempo, quem se debruçar sobre as notícias geradas durante a pandemia atual terá a amarga impressão que, novamente, desperdiçamos outra oportunidade, quando tínhamos tudo para dar certo.