Uma das dificuldades envolvendo o tema “Burnout” é que a noção ganhou status de dogma religioso. E, como tal, é indiscutível – trata-se de uma questão de fé. Entretanto, para aqueles que se reservam algum espaço para pensar sobre o assunto, há aspectos bastante interessantes a serem considerados.

A decisão da OMS de passar a nomear Burnout como “síndrome” é um deles. E a primeira impressão que se tem é que a confusão envolvendo o Burnout foi instalada dentro da própria Organização Mundial da Saúde, desde o momento em que decidiram anunciar a mudança na forma de descrever a síndrome: no dia 26 de junho de 2019 um porta-voz da instituição veio a público dizendo que Burnout passaria a ser considerado doença na CID 11. Quatro dias depois, outro porta-voz desfez a informação: “Houve um mal-entendido. ‘Burnout ’ não foi de fato reconhecido pela OMS como uma condição médica. Posto isto, a importância do bem-estar no local de trabalho é bem compreendida pela OMS’, disse Christian Lindmeier, porta-voz da agência de saúde, ao Medscape Medical News.” Além do portal Medscape, outros órgãos da mídia também deram a notícia. Numa época em que as pessoas parecem muito mais propensas a reagir do que pensar e, consequentemente, manter em suas mentes aquilo que é mais sensacionalista, obviamente se esqueceram do desmentido do segundo porta voz e o noticiário do início deste ano só fala em Burnout  como “doença”, especificamente “doença ocupacional”.

Mas este é apenas o começo da trapalhada. É preciso que o leitor entenda alguns aspectos da CID para que possa compreender o que aconteceu. A CID classifica doenças usando códigos que se iniciam com letras. A CID 10, por exemplo, classificava doenças até a letra S. A partir da letra T, codificava eventos variados, que vão de fraturas e intoxicações a “objeto estranho no ouvido”, “queda da própria altura em superfície coberta de neve”, “colisão entre bicicleta e veículo de tração animal”, “permanência prolongada em ambiente agravitacional”, etc.. O “Burnout” encontrava-se na subcategoria ”Problemas com a organização do seu modo de vida”, dentro do grande grupo “Fatores que influenciam o estado de saúde ou o contato com os serviços de saúde” (letra Z). O que as mídias se esquecem de dizer é que a Síndrome de Burnout vai continuar nessa mesma categoria dentro da CID 11 – ou seja, como eventos que não correspondem a doenças (agora codificada sob a letra Q).

Mas este ainda é apenas um pequeno ingrediente envolvendo a confusão em torno do “Burnout”. A OMS adotou os critérios do MBI (Maslach Burnout Inventory) para caracterizar a síndrome. O MBI é um questionário simples e ingênuo que identifica ou “diagnostica” Burnout em todo e qualquer respondedor, que ganha, no mínimo, o rótulo de portador de “Burnout leve”. É fortemente identificado com o Burnout. (“Burnout  é o que o MBI mede e o MBI mede o que é Burnout” diz Kristensen, pesquisador dinamarquês que criou o CBI – Copenhagen Burnout Inventory). Além disso, o MBI é rigidamente protegido por direitos autorais, seu uso exige pagamento, o que torna o Burnout, por tabela, a primeira “doença” da história sujeita ao pagamento de direitos autorais… Junte-se aí o fato de que a “síndrome” é caracterizada por pelo menos 140 sintomas. Schaufeli, o principal teórico do Burnout, compilou 132, encontramos mais oito.

Com isso tudo, temos uma boa medida da trapalhada em que se meteu a OMS: incluiu uma “doença” – que não considera doença (!!) – que acomete 100% das populações. Está incluindo na CID 11 a primeira “doença” protegida por direitos autorais e que, com seus 140 sintomas, corresponderia à mais surpreendente, bizarra e estranha índrome da qual já se ouviu falar. Como se não bastasse, a OMS recomenda que sejam exluídos depressão, transtorno de estresse e ansiedade do “diagnóstico”. Ora, as diversas categorias de depressão e de transtornos de estresse estão justamente entre os cerca de 30 diagnósticos psiquiátricos que são engolfados e rotulados como “Burnout” pelo MBI! Durma-se com um barulho destes! Mas os crentes dormirão tranquilamente: trata-se de uma questão de fé, e pronto!

 

*Estevam Vaz de Lima é médico pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP); psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association.