A ciência, a pseudociência e a psicanálise
Por Jan Luiz Leonardi
A publicação do livro Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, de Natália Pasternak e Carlos Orsi, reacendeu um antigo e acalorado debate sobre a cientificidade da psicanálise e a sua relevância na área da saúde.
Ora, a psicanálise está profundamente enraizada na compreensão da mente humana, é ensinada em universidades renomadas e amplamente praticada na clínica. Então, por que tanta gente a ataca?
A razão está nas interpretações excêntricas de Freud, até hoje sem provas empíricas, sobre o sofrimento psíquico de seus pacientes, que constituem a essência da psicanálise. As meninas têm inveja do pênis, o que as levam a se sentir inferior e a desenvolver um desejo inconsciente pelo órgão. Meninos se sentem sexualmente atraídos por sua mãe e desejam inconscientemente a morte de seus pais. Sonhos são expressões simbólicas de desejos inconscientes recalcados.
Além disso, a teoria psicanalítica (incluindo sua evolução ao longo do século XX) não se relaciona com o resto da ciência psicológica, com tudo que foi descoberto nos últimos 100 anos sobre comportamento, psicopatologia, neurociências, atenção, percepção, memória, cognição, linguagem, motivação, personalidade, tomada de decisão etc.
Parte dos psicanalistas defende que a psicanálise não é ciência e sequer pretende ser. Alguns afirmam que é uma filosofia, outros que é um método interpretativo e outros que é uma forma de análise do sofrimento humano.
Bom, a questão que emerge é se uma filosofia ou uma hermenêutica deve ser utilizada como estratégia de tratamento de condições como suicídio, ansiedade, depressão, anorexia nervosa, dependência química e autismo e, também, se as suas explicações sobre a natureza humana são, de fato, confiáveis. Em um país onde os dados epidemiológicos sobre depressão e ansiedade são alarmantes, uma prática clínica não científica baseada numa teoria sem sustentação empírica deveria ser custeada com dinheiro público?
A maioria dos psicanalistas advogam a psicanálise como um método terapêutico tão benéfico quanto, ou até melhor, do que outras modalidades de psicoterapia. Neste caso, estamos no campo da ciência. Logo, devemos perguntar quantas pesquisas clínicas existem, qual é a qualidade metodológica dessas pesquisas, qual é a validade e confiabilidade das medidas escolhidas para avaliar os pacientes, quão replicáveis são os procedimentos utilizados, como as condições experimental e controle foram arranjadas para permitir comparações entre elas, como os dados foram analisados, qual é a consistência dos resultados das diferentes pesquisas, qual é a magnitude de benefício encontrado etc. Tais perguntas não estão sendo adequadamente respondidas por psicanalistas.
Há também aqueles que afirmam que a psicanálise constitui uma ciência distinta, operando com seus próprios critérios de verdade. Parte do argumento é o de que a complexidade dos fenômenos da mente humana é impossível de ser avaliada por meio da “ciência tradicional”.
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Em primeiro lugar, eventos subjetivos são passíveis, sim, de serem quantificados e analisados. Existe uma área da psicologia chamada psicometria, que se dedica a traduzir experiências subjetivas em dados mensuráveis. Todas as áreas da saúde dependem de psicometria. Por exemplo, na fisioterapia é fundamental avaliar a intensidade de dor, que é um evento subjetivo. Na medicina, é fundamental medir fadiga, tontura, coceira, zumbido no ouvido. Existem instrumentos psicométricos para avaliar tristeza, pessimismo, autocrítica, ansiedade, vontade de morrer, medo de engordar, qualidade de vida, perfeccionismo, impulsividade, etc. O desafio surge quando alguém declara que a mensuração na psicanálise é inviável, justificando que ela se ocupa do “existir”, da “jornada do viver”, da “essência psíquica”. O debate sobre a eficácia de uma psicoterapia, seja ela de base psicanalítica ou não, está intrinsecamente ligado à capacidade de detectar e avaliar mudanças nos resultados clínicos. Sem isso, fica difícil saber se a psicoterapia funciona e, mais, se ela é segura. Além disso, a alegação de que a psicanálise não é passível de ser avaliada por lidar com fenômenos que nem sequer somos capazes de mensurar leva-nos a um questionamento muito pertinente: como os psicanalistas sabem que seus constructos teóricos são realmente confiáveis e que não estão enganados?
Outro argumento sobre a psicanálise enquanto uma ciência autossuficiente é o de que cada ser humano é um indivíduo único, com características idiossincráticas e que, portanto, precisa de um tratamento único. Assim, descobertas científicas envolvendo outras pessoas não poderiam ser extrapoladas para um determinado paciente em particular, devido à singularidade de cada indivíduo. Primeiro, sim, todo indivíduo é único. Isso é inegável. Segundo, a individualização de um tratamento é inevitável não só na psicoterapia, mas também na medicina, na fisioterapia, na odontologia, na fonoaudiologia, na educação física, áreas que avançaram significativamente graças a pesquisas clínicas. Terceiro, ter algum ponto de partida para generalização certamente é melhor do que nada. O fato de cada indivíduo ser único não impossibilita depreender inferências probabilísticas de amostras para pacientes individuais. Dados probabilísticos são imperfeitos, mas são muito melhores do que especulações teóricas, intuição clínica ou evidências anedóticas (“meu vizinho fez e melhorou”). A rigor, uma intervenção absolutamente individualizada, que não usufrui de conhecimento acumulado, não tem como ser científica, por definição.
A verdadeira questão não é meramente se a psicanálise é ciência, filosofia ou método interpretativo, mas se ela pode ser efetivamente integrada e eticamente responsabilizada dentro de um sistema de saúde que enfrenta desafios cotidianos alarmantes. A psicanálise não é imune à crítica e à refutação. Psicanalistas se comportam como se ela fosse confiável para o alívio de sofrimento psicológico e para a solução de problemas humanos. Será que é? Para isso, a psicanálise precisa ser avaliada por meio de métodos rigorosos. E, para isso, a ciência tem muito a oferecer.
Jan Luiz Leonardi é psicólogo, formado em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech, dos EUA, com mestrado em Psicologia Experimental pela PUC-SP e doutorado em Psicologia Clínica pela USP. É coordenador do Clube de Excelência em Psicologia Baseada em Evidências.
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