Em um país de advogados e de “Odoricos Paraguaçus”, não seria original sugerir que o “juridiquês”, consolidado como marca de distinção e expressão de poder, e a retórica política, opulenta e vazia, consistem ambas em barreiras das mais importantes ao fortalecimento da sociedade civil e ao exercício da cidadania por parte da grande massa da população brasileira. Expressões do pedantismo conservador patrimonialista, os dialetos do nosso estamento burocrático permeiam os textos e pronunciamentos oficiais e são emblemas do abismo entre sociedade e Estado no Brasil. Some-se a isso o letramento tardio e o ainda forte predomínio da oralidade na sociedade brasileira em contraste com a ênfase de suas instituições na cultura escrita, e tem-se não só um quadro desalentador da nossa democracia, mas também um caminho para compreendê-la e aperfeiçoá-la.

Instituições democráticas que pretendam servir a sociedade devem, em primeiro lugar, se fazer entender por ela. Senão tornam-se como a Igreja da Idade Média que rezava missas em latim e proibia a tradução das Escrituras para o vernáculo, pretendendo sobreviver pela tradição e não pela fé, monopolizando o conhecimento e se avocando a condição de mediadora entre humanidade e Deus. Não obstante, é exatamente essa a crítica que se faz ao nosso estamento burocrático: ainda hoje este se avoca a condição de mediador entre sociedade e Estado, mas na verdade se faz Estado e subordina a sociedade como deixa claro quando usufrui o patrimônio público como se privado fosse, tal qual a Igreja usufruía a venda de indulgências como se a salvação da alma a ela pertencesse para ser negociada.
Contra a Igreja Católica Romana a Reforma Protestante teve como fundamento primordial a concepção de que cada cristão deveria possuir o direito de ter a Bíblia em seu próprio idioma e de perscrutá-la, como ordenara Jesus em João 5:39. Os reformadores se empenharam nas traduções dos textos sagrados e na ampla divulgação de suas teses, tendo na prensa tipográfica de Gutenberg um meio essencial. A nossa reforma de cunho social e político que tem como alvo o estamento burocrático e o patrimonialismo segue o mesmo caminho. A linguagem das redes sociais eletrônicas é o nosso vernáculo. Os “blogueiros”, “vlogueiros”, ativistas e tantos outros são nossos “Luteros”, e a internet a nova prensa tipográfica.A orientar o movimento o ideal de esclarecimento por meio da democratização do conhecimento e da informação política.
Charges, vídeos, wikis e postagens em blogs têm potencial para ajudar a aumentar o conhecimento da população acerca de suas leis e instituições, na medida em que traduzam o oficialismo burocrático e a obscuridade de nossas instituições em uma linguagem de fato compreensível. Longos textos jornalísticos ricos em detalhes e explicações minuciosas podem ser traduzidos em imagens com pequenas legendas ou mesmo curtos vídeos satíricos para circulação em redes sociais. Tais mensagens simples, que também tem o mérito de atingir parte da população não habituada à leitura de jornais e revistas, não se esgotam em sua transmissão uma vez que em torno delas sujeitos se manifestam e diálogos irrompem entre aqueles que transcendem a esfera privada e passam a se identificar como parte de uma esfera pública perante a qual os detentores do poder devem se legitimar.
Esse esclarecimento por meio de processos comunicativos democráticos em espaços públicos essencialmente abertos, como é a internet, deve ser compreendido como partida para o questionamento e subversão das relações de poder entre Estado e Sociedade. ?? medida que o povo passa a conhecer seu ordenamento jurídico e político e a reconhecer suas instituições, de modo que também note suas disfunções e vícios, novas respostas à demanda por representação se tornam prementes. Nesse processo a dominação patrimonialista perde legitimidade e a emergência de uma ordem racional-legal poderá enfim ocorrer no Brasil. Mas nada disso é possível enquanto o poder permanece escondido em sua complexidade.
A maior demanda por transparência pública e participação se soma a esse processo como decorrência da emancipação e maior autonomia dos indivíduos que passam a buscar, enfim, exercer seu protagonismo no sistema político com voz, influência e capacidade de decisão. Não está em sua origem, no entanto. O que desencadeia o processo é a revelação do Estado ao indivíduo por meio de uma mudança de linguagem que põe fim a um monopólio de conhecimento e se torna ponte sobre o abismo que separa estes dois mundos. Talvez seja essa a reforma em curso no Brasil e que pode levar a libertação da sociedade das amarras do patrimonialismo.