Nas sociedades ocidentais contemporâneas, em especial no Terceiro Mundo, assiste-se no presente momento histórico a uma contradição dialética brutal. Enquanto no âmbito da sociedade civil ocorre uma gradativa expansão dos direitos de cidadania para parcelas vulneráveis da população, como minorias étnicas, sociais e de gênero, ao mesmo tempo, o exercício da autoridade estatal distancia-se dos interesses reais do conjunto de cidadãos, congelando-se como esfera autônoma e soberbamente indiferente às necessidades dos eleitores. No caso brasileiro, os inúmeros escândalos de corrupção conhecidos nos últimos meses escancaram o isolamento dos governantes, parlamentares e de alguns membros das esferas mais elevadas do judiciário, em uma espécie de torre de marfim, exclusivamente voltada para a garantia de suas próprias riquezas e regalias juridicamente garantidas, porém completamente alheias aos princípios éticos mais elementares.
Seria perfeitamente possível supor que o sistema democrático está sendo internamente corroído pela ação de múltiplas máfias palacianas que se aproveitam da boa vontade do eleitor e de brechas jurídicas astuciosamente manuseadas a favor de seus interesses. Embora reconhecendo a gravidade do problema, essa suposição, ao remeter suas causas a mero desvio das instituições de sua rota democrática talvez ainda possa ser otimista diante da possibilidade de que a política esteja apenas funcionando rigorosamente de acordo com a lógica que a sustenta. Antes que o trabalho de cientistas políticos possa esclarecer em que consistiria uma lógica tão perversa capaz de converter toda a população de diversos países à condição de reféns de grupos mafiosos instalados nos diversos setores do Estado, ao menos duas grandes obras de literatura se encarregaram de desnudar o modo de funcionamento real da esfera política.
Em ordem cronológica, cabe em primeiro lugar elencar o conto Seminário dos ratos, de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1977. A obra descreve as atribulações dos membros do elevado escalão de um governo que promove uma reunião em local isolado e paradisíaco sob o pretexto de discutir medidas a serem tomadas para estancar uma fantástica epidemia de ratos espalhada por todo o país. Em tom de escárnio, perfeitamente adequado para descrever a indiferença geral das excelências ali instaladas, o Secretário de Bem-estar Público e Privado resume para o Chefe de Relações Públicas o estado da ópera: os críticos da imprensa “reclamam que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, já que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do primeiro Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias, mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça ??? acrescentou contendo uma risadinha”. O desdém absoluto dos membros do governo transparece na prioridade real que anima a reunião. Rigorosamente desatentos com a epidemia de roedores, os ministros de Estado preocupam-se somente com a repercussão do Seminário junto à opinião pública. Para isso, “Vossa excelência, Chefe das Relações Públicas”, candidato a reeleição, para quem “o povo não passa de uma abstração”, concentra-se exclusivamente na divulgação de uma imagem positiva a ser coroada com a chegada espetacular de um jato especial, ladeado por fotógrafos, canais de televisão e correspondentes estrangeiros. O jantar de abertura do Seminário, regado a lagostas imensas, abacaxis belíssimos e vinho chileno de safra reconhecida é subitamente impedido pela chegada de visitantes inoportunos que condenam o próprio evento a uma completa impossibilidade.
Em segundo lugar, vale destacar a relevância do romance Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago, publicado em 2004. O livro narra a reação insólita do establishment político de um país imaginário perante uma avalanche de votos em branco que impede a continuidade da normalidade administrativa. A lucidez a que o título da obra se refere consiste justamente em uma recusa tácita e não organizada da grande maioria de eleitores em renovar os cargos públicos ocupados pelos três partidos políticos (o de direita, o do meio e o de esquerda). O voto em branco traduz a sensatez de uma população plenamente consciente acerca da inconsistência da distinção ideológica entre candidatos que, uma vez eleitos, voltam as costas à população, dedicando-se unicamente à garantia de seus privilégios. A reação dos governantes ao protesto silencioso da massa de eleitores consiste em eliminar todas as mediações institucionais justificadoras da existência do Estado na capital do país, notadamente sob a forma de serviços básicos e de abastecimento de produtos. A classe política institui um estado de sítio que converte a própria população cidadã em inimigo a ser combatido por um Estado que se nega a exercer o papel que lhe cabe na administração dos recursos mais básicos da vida. Para desgosto dos governantes revoltosos, o aguardado caos não se instaura, pois as pessoas continuam a tocar suas vidas procurando contornar as inevitáveis dificuldades da situação, porém com dignidade suficiente para impedir o colapso da vida civilizada. Em uma das reflexões de alcance quase metafísico da obra, um personagem desvela o segredo conhecido por todos aqueles que são lúcidos o suficiente sobre o funcionamento da política: “Aprendi neste ofício que os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão.”
Consideradas em conjunto, as duas obras literárias traduzem com sensibilidade, elevada qualidade estética e, sobretudo, com notável precisão analítica, a verdade sobre a relação entre os ocupantes das mais elevadas esferas do aparato estatal e a população pagadora de impostos. Sob a forma de simples parábolas, uma formidável epidemia de ratos, e uma maciça votação em branco, os escritores conseguem o efeito salutar de esclarecer o esvaziamento do sistema democrático da própria substância que originalmente justificou sua existência. As instituições democráticas, em sua tripla modalidade (executivo, legislativo, judiciário), revelam-se como mero aparato formal destituído de relação orgânica com as necessidades mais simples da população eleitora. O conto e o romance explicitam não se tratar simplesmente de uma crise conjuntural passível de reformas administrativas ou correções de natureza ética, mas do comprometimento da própria substância da democracia, quando a lógica da ação assume parâmetros instrumentais relacionados com o cálculo entre custos públicos e benefícios particulares de restritos grupos mafiosos inteiramente alheios aos direitos dos cidadãos.
No contexto brasileiro, diante dos mais recentes acontecimentos, compreende-se perfeitamente a capacidade dos dois grandes artistas da palavra em dissipar as névoas da aparência sobre a relação entre Estado e sociedade civil, mostrando claramente o caráter formalista da democracia atual. Considerando-se que temos um ex-presidente condenado pela justiça por corrupção, e um atual presidente ladeado por malas de dinheiro vivo, livrado de processos de impedimento graças a negociações com parlamentares carentes de esclarecimento público, à esquerda e à direita, o espectro político atual está tão claramente comprometido em sua substância quanto os regimes fictícios descritos por nossos grandes escritores. Em especial no romance de Saramago é patente a artificialidade da distinção entre esquerda e direita. Longe de traduzir um antagonismo efetivo entre concepções ideológicas distintas, a tal oposição correspondem afinidades precariamente disfarçadas pelo mise-en-scène dos palanques. Enquanto os ratos, legitimados pelo voto, corroem os precários laços que ligam as instituições do Estado às necessidades do homem comum, a história aguarda, paciente e esperançosa, o momento da lucidez.
Sinésio Ferraz Bueno, professor do departamento de filosofia da Unesp.