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Guerra cultural: um risco para a fé e a democracia

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Gutierres Fernandes Siqueira*

Nos últimos anos, a expressão “guerra cultural” tornou-se comum no debate público. Ela designa um intenso conflito social e político centrado em valores culturais, morais e identitários. Nessa perspectiva, a sociedade é frequentemente vista como dividida entre campos antagônicos (“nós” contra “eles”), e o objetivo primordial é a vitória de uma visão sobre a outra, a qualquer custo. As táticas empregadas incluem a deslegitimação do adversário, a hostilidade e a busca por hegemonia no espaço público e nas instituições. A linguagem é caracteristicamente combativa, mobilizando apoiadores através do medo e da indignação contra o “outro”.

Essa postura tornou-se tentadora para diversos segmentos religiosos, especialmente entre cristãos evangélicos e católicos tradicionalistas. Porém, ao olhar com seriedade para o coração do ensino cristão, especialmente o Sermão do Monte (Evangelho segundo Mateus 5-7), torna-se evidente que fomentar tal guerra cultural contradiz frontalmente o ethos pregado por Jesus Cristo.

O Sermão do Monte é uma exortação ao discipulado radical, marcado pela mansidão, misericórdia e reconciliação. Ao afirmar que “bem-aventurados são os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9), Jesus indica claramente que a identidade cristã não é definida pelo espírito de disputa ou antagonismo constante, mas sim pela busca ativa pela paz. A orientação radical de amar os inimigos, orar pelos perseguidores e oferecer a outra face (Mateus 5.38-48) coloca os discípulos num lugar de resistência não violenta e postura humilde, incompatível com a linguagem bélica e o comportamento combativo próprios da guerra cultural.

Torna-se difícil conciliar o chamado ao amor ao inimigo com a prática da demonização do adversário político ou cultural. A fé corre o risco de se tornar apenas uma identidade cultural ou um verniz para agendas políticas. A guerra cultural frequentemente racha as próprias igrejas, colocando irmãos contra irmãos por alinhamentos políticos.

Há, portanto, um risco duplo: para a fé e para a democracia. Para a fé cristã, a adoção da guerra cultural significa renunciar à essência pacificadora do Evangelho, transformando igrejas em plataformas políticas e reduzindo o testemunho cristão a meras disputas por influência e poder político. Para a democracia liberal, esse clima permanente de conflito mina o diálogo civilizado, corroendo o tecido social essencial para a manutenção de instituições democráticas fortes e saudáveis. A hostilidade constante cria espaços férteis para extremismos e discursos populistas que desprezam o pluralismo e o respeito mútuo.

 

Lembro-me de ler o teólogo anglicano N. T. Wright, um dos maiores eruditos atuais do Novo Testamento, comentar que raramente ouviu sermões sobre o Sermão do Monte. Isso me fez recordar que minha experiência não era diferente. É hora de nos voltarmos ao coração do Evangelho.

O caminho alternativo, conforme o Sermão do Monte, é cultivar a humildade, o diálogo e a compaixão. Cristãos são chamados a viver como cidadãos engajados, conscientes e comprometidos com a verdade, mas nunca ao custo daquilo que constitui a essência da mensagem de Jesus: amar, acolher e promover a paz, mesmo diante das diferenças mais profundas. Cultivar guerra cultural é incompatível não apenas com o Sermão do Monte, mas com o próprio espírito do Evangelho.

*Gutierres Fernandes Siqueira é jornalista, escritor e autor do livro “Igreja polarizada: Como a guerra cultural ameaça destruir nossa fé” (Editora Mundo Cristão).