Dia 29 de janeiro é o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Para lembrar a data, que deveria ser praticada todo dia, nada melhor do que assistir e discutir o documentário ‘Meu nome é Jacque’, dirigido por Angela Zoé. Feito com extrema sensibilidade, trata o tema com realismo e depoimentos que enfocam o tema sem rodeios desnecessários.
O foco é a história de vida de Jaqueline Rocha Côrtes, uma mulher transexual brasileira, que vive com Aids há mais de 20 anos. Ela já atuou como representante do governo brasileiro e na Organização das Nações Unidas de maneira militante e incessante, com extrema sinceridade e transparência nas mais variadas facetas, da sexual à emocional.
E nesse aspecto, o documentário nos remete a uma discussão eterna: a da busca da própria beleza e do encontro daquilo que somos com o queremos ser e com quilo que a sociedade quer que sejamos. Essas relações estão no eixo central do debate, porque o conceito do homem que não se sente confortável no corpo de mulher ou vice-versa aponta para um conceito de belo individual em que cada um se reconhece por mais diferente ou surpreendente que possa parecer aos outr@s. Um livro e sua versão em filme que ilustram essa ideia de maneira inesquecível. Refiro-me a ‘Morte em Veneza’. Publicado pelo alemão Thomas Mann em 1912, tem enredo simples: um escritor de meia-idade apaixona-se, numa cidade consumida pela peste, pelo ideal de beleza, um adolescente, e morre sem tertrocado uma palavra com ele. Na interpretação cinematográfica de Luchino Visconti, de 1971, o escritor se torna compositor e obras de Mahler pontuam a narrativa. A essência, porém, é a mesma: na busca do belo, o artista se perde. O final trágico traz um grande ensinamento: é na procura que o ser humano ganha energia para dialogar com o mundo.
Casada, com dois filhos adotivos, Jacque narra, assim como o texto de Mann, a sua busca pelo casamento entre a beleza interna a e a imagem externa. Isso inclui desde o desejo de se vestir como menina até a busca pela realização de ser mãe. Os depoimentos de um de seus irmãos, a quem ajudou a retirar do vício das drogas, são absolutamente arrepiantes na demonstração de como a questão trans envolve não só @ protagonista, mas também a família.
O documentário não tem narrador. Opta por dar voz diretamente a Jacque e ao seu círculo mais próximo, reunido para um almoço em que os pais e situações do passado e presente são lembrados. Assim, ser trans e ser portador de vírus da Aids são vistos de forma complementar com preconceitos, dores e, sobretudo, amores.
Complexos e profundos, o documentário de Angela Zoé, o livro de Mann e o filme de Visconti não são rapidamente palatáveis. Em sua densidade, apontam para uma reflexão permanente de como a vida pode ser direcionada para um encontro da beleza em si mesm@, ou com o ideal que disso se tem. Seja qual for o sonho e o desejo de cada um, eles podem, de acordo com amaneira que se dialoga com eles, salvar ou destruir. Tudo depende da intensidade e das maneiras como essa jornada ocorre. Trata-se de um belo e ambicioso desafio que o Dia Nacional da Visibilidade Trans nos obriga a pensar e repensar.
Oscar D’Ambrosio, jornalista, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, é Doutor em Educação, Arte e História da Cultura.