A cidade em que Dostoiévski, um dos maiores escritores russos de todos os tempos, passou boa parte da sua vida e morreu, foi palco ontem de um brutal atentado no metrô, com inúmeras vítimas. Infelizmente, de tão rotineiros, os atentados de (provável) matriz terrorista na Europa não mais nos surpreendem. No entanto, é preciso refletir sobre os fatos e, para tanto, nada melhor do que voltar aos clássicos que merecem e devem ser lidos à luz dos acontecimentos hodiernos, para que fique ainda mais claro o seu valor cultural, no sentido mais alto do que entendemos por cultura, isto é, aquela que nos dá a lucidez necessária para enfrentar a nossa condição existencial e o nosso papel na sociedade.A referência a obras fundamentais do escritor, que viveu e escreveu nesta cidade martirizada pela ferocidade dos terroristas, nos ajuda a compreender melhor os acontecimentos. Em Crime e Castigo, uma de suas obras clássicas, ambientada em São Petersburgo, o protagonista Raskolnikov mata a idosa judia tida como usurária apenas como um jogo, para testar a sua coragem de cometer um crime hediondo e para aguardar os acontecimentos que poderiam ou não leva-lo à prisão. Ele comete, portanto, um ato de destruição, como tantos outros perpetrados ao longo da história por um número incontável de seres humanos. Não há verdadeira motivação para o crime, assim como não há uma única razão plausível para tantas e inexplicáveis ações que visam apenas à dilapidação, à aniquilação de povos e culturas, nem sempre com motivações evidentes ou, frequentemente, com motivações forjadas, visando à obtenção ou à manutenção do poder.O verdadeiro castigo de Raskolnikov será a sua posterior consciência pesada. Partindo da ética cristã, Dostoievski mostra o itinerário pelo “inferno na terra” vivenciado pelo protagonista do seu romance. Entre nós, sobretudo nos dias de hoje, é difícil crer que sobrevenha a dor de consciência após tantos atos de vandalismo e de destruição. Aparentemente, a frieza demonstrada pelos comunicados que se seguem após muitos atentados terroristas nos deixa entrever por trás desses atos seres humanos brutalizados a ponto de não mais possuírem nenhum tipo de consciência.Na verdade, a consciência possuída por esses militantes armados que comumente chamamos de terroristas está ligada à ferrenha e cega crença numa ideologia associada a uma disciplina militar “desumanizante”, que a todos transforma em autômatos dispostos a cumprir ordens e, sobretudo, a morrer no cumprimento das ordens. Tornam-se conscientes, portanto, apenas do cumprimento de um dever, de uma missão, quase sempre associada a antigas feridas nunca bem cicatrizadas ou a desejos de vingança que atravessam os séculos.Quem quer que assuma a autoria do recente atentado no metrô da terra natal de Dostoievski, dificilmente mostrará arrependimento e dor pelas mortes cometidas. A ideologia cega, ou a fé inabalável, de qualquer natureza, não admite outra forma de pensamento ou de comportamento. Quem ousar, portanto, se interpor no caminho que separa o fanático do seu objeto de desejo merecerá a morte, sem perdão. Não há, para este tipo de pessoa, vítima de incontáveis lavagens cerebrais que se seguiram a séculos de opressões e de intolerâncias, muitas provenientes de vários países e de várias fontes, impérios coloniais ou não, o sentimento de culpa que se seguiu ao ato impensável, quase mecânico, de Raskolnikov.Todo sangue derramado é sempre um desperdício cruel de vidas, de anseios e de esperanças, mas o sangue derramado para contentar a sanha assassina de determinados grupelhos poderá ser, ao menos se usarmos como fundamento para a nossa reflexão a perspectiva cristã de Dostoievski, caso sejamos capazes de reler os seus escritos à luz dos tristes acontecimentos de ontem, ao menos mais uma terrível constatação de que parecemos destinados na terra a uma destruição contínua, da natureza e dos semelhantes, tendo sido praticamente inúteis ou paliativas as reflexões de incontáveis filósofos e pensadores de todos os gêneros, além de séculos e séculos de todos os tipos de artes que visaram a representar a condição humana, sem contar a ciência destinada a “domar” e dominar as forças naturais que nos cercam.Enfim, infelizmente não creio que tais desapiedados terroristas possam seguir o mesmo itinerário do inferno vivenciado por Raskolnikov e, mais uma vez, muita gente terá morrido apenas para nos lembrar de que talvez nada, nunca, poderá ter uma solução final para a contínua destruição que nos acompanha como sina fatal.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.