Os planos municipais de educação de diversos municípios do estado de São Paulo, inclusive na capital, acabam de sofrer um golpe forjado em falso testemunho e todos nós, sociedade civil em geral, devemos estar atônitos, pois sofreremos as consequências que continuarão escoando sangue por meio da violência doméstica nas famílias, das agressões nas escolas, dos assassinatos cotidianos e da violência estrutural de Estado.
Instituições como a Fundação Perceu Abramo, o Instituto de pesquisa econômica aplicada (Ipea), a Central 180, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, o Instituto Avon, o Data Popular e o Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) têm apontado há anos números estarrecedores: mais de 1 milhão de mulheres são vítimas da violência doméstica por ano, sendo quase 60% delas agredidas todos os dias. Entre 2001 e 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios no Brasil. Em 2013 foram quase 15 mil inquéritos que chegaram à Justiça do Distrito Federal por meio da Lei Maria Da Penha. Em 2014, 03 em cada 05 mulheres jovens sofreram violência em seus relacionamentos. Inclusive, já trouxemos outros números nessa seção em setembro de 2011.
Quanto à homofobia, sabemos que o Brasil é a nação que mais mata homossexuais no mundo. A cada 28 horas um homossexual é assassinado no país. Só em 2012 foram quase 10 mil denúncias de violação junto à Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, sendo 338 assassinatos motivados por homofobia, e os números, pasmem, aumentam ano a ano.
As propostas substitutivas aprovadas nas diversas câmara paulistas por pressão de setores religiosos rompe com anos de pesquisas, debates e trabalhos de acadêmicos e movimentos sociais. Mais que isso, denota uma irresponsabilidade dos parlamentares, pois ignora o sistema democrático que a constitui. Os Planos Municipais de Educação são fruto de pelo menos seis anos de discussões públicas, com ampla participação democrática. São produtos das conferências municipais, estaduais e nacional articuladas desde 2009 com as comunidades escolares, os gestores públicos da educação e a sociedade civil para pensar desde o ensino fundamental ao superior. Isso quer dizer que diversos atores construíram coletivamente durante anos os documentos e propostas para a educação, visando o futuro do país e da sociedade. Eu mesmo participei dessas etapas e constatei que as demandas por tratar gênero e orientação sexual nas escolas vinham, sobretudo, de sua base, da comunidade de alunos e professores, que faziam cartazes expressando a necessidade de debater violência contra as mulheres e homossexuais, certamente por serem parte dessas estatísticas acima mencionadas. E, afinal, as escolas são parte da sociedade e cumpre respondê-la com a educação para cidadania. A necessidade de tratar gênero e orientação sexual representa uma reparação de injustiças históricas.
Assim, é assustador ver pessoas e setores da sociedade que nunca promovem a participação política em detrimento da condução de rebanhos se pronunciarem contra a ???ideologia de gênero???. Isso representa uma desonestidade e ignorância sem dimensão. As emendas de consenso nada mais são que o silenciamento das minorias políticas. Infelizmente, até compreensivo considerando em Americana, por exemplo, um parlamento de homens e uma única mulher que nunca fala ou defende as causas das mulheres, a maioria insensível ou pouco conhecedora desses temas. Aliás, toda unanimidade é burra, como diria Nelson Rodrigues, ainda mais em temas polêmicos.
A substituição do texto não está de acordo com os princípios previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos como apontado nesse município, haja vista que silencia as vozes das minorias, universalizando os sujeitos ao invés de sua dignidade enquanto pessoa humana, não considera o princípio da reciprocidade, outra incompreensão pela ignorância. Os demais argumentos são tão incabíveis como este, próprios de quem nunca trabalhou com educação ou pouco sabe quais as demandas que emanam nas instituições de ensino, de quem mal compreende nossa história social. Há até uma absurda defesa da família, instituindo um modelo único possível, obviamente o patriarcal, monogâmico e cristão, desconsiderando os diversos arranjos familiares que temos no Brasil, como aponta o IBGE, e no mundo, desde as culturas indígenas às comunidades orientais e africanas. Isso é um golpe pelos privilégios como se fez brutalmente desde nossa colonização.
O que os Estados Unidos viveram nos anos 60 e 70, reproduzimos hoje no Brasil, personagens e enredos que de tão parecidos, parecem ficção. Desde as semelhanças de John V. Briggs e Jair M. Bolsonaro, como já apontamos num outro artigo, aos levantes fundamentalistas. Fomos incapazes de aprender com erros históricos do passado e promovemos um horror ao invés de um futuro pela igualdade e justiça como prescrevem os acordos internacionais que somos signatários.
Quanto aos setores religiosos que subitamente apareceram, penso que o perdão da Igreja à humanidade pelo genocídio que desenvolveu na Idade Média não foi capaz de redimir a perversidade de alguns de seus vulgos discípulos, estes tão incompreensíveis. O mesmo ocorre com os demais fundamentalistas religiosos, sem generalizações, que se levantam em falso testemunho, vociferando atrocidades em nome de outro maior, absoluto e incontestável, como a figuras de Deus e Jesus, cristalizadas em nossa cultura. Fundamentalistas que fazem uma interpretação oportunista de um mito, pois o Deus e o Jesus sagrados são amor, ternura e compaixão, não indiferença, ódio e irresponsabilidade intelectual e política.
Fábio Ortolano . Professor no SENAC São Paulo e doutorando em Psicologia Social pela USP, pesquisa sexualidade e direitos humanos.