O primeiro turno das eleições para escolha de 5.570 prefeitos e 57 mil vereadores pode ser considerado o mais insosso e desanimado desses tempos de repúdio à política. As razões para o clima de indiferença que envolve a maior parcela dos 150 milhões de eleitores abrigam um conjunto de fatores: o medo do Covid-19; a descrença na política, que ganhou volume com as investigações da Operação Lava Jato; a crise econômica, que empobrece a população; a deterioração dos serviços sociais, particularmente na área da saúde; e, por fim, a polarização que azeda as relações sociais, aumentando a agressividade entre grupos e rebaixando a expressão dos protagonistas. É oportuno lembrar que a descrença geral, ao contrário do que se pode concluir de maneira mais apressada, não induz o eleitor a votar em qualquer um.
Ao contrário, provoca no cidadão a vontade de mandar todos para o mesmo buraco e, na ausência dessa possibilidade, abre alternativas: deixar de votar, votar em branco ou escolher alguém de perfil mais alinhado às demandas do povo. Donde se aduz que é bem razoável um recorde de votos nulos e brancos e a escolha de quadros melhores que a atual moldura governativo/representativa. Deixar de votar ou votar em branco, também na contramão do que se pode imaginar, não significa um ato de anemia política. Em outros termos, trata-se de uma decisão que emana da vontade e da concepção do eleitor sobre os candidatos, a par da natural tendência de milhares de pessoas de evitar aglomerações, nesse momento em que a pandemia ameaça formar uma segunda onda.
Em suma, o eleitor avança no caminho da racionalidade, que é um fenômeno condizente com o estágio civilizatório que respeita direitos e deveres e registra índice mais elevado de cidadania. O processo cognitivo pode ser assim explicado: de tanto ver coisa ruim, de tanto ver o copo da corrupção transbordar, a pessoa decide virar a mesa, estapear ou apenar alguns candidatos, principalmente aqueles que só aparecem nas periferias de quatro em quatro anos. O voto, por isso mesmo, carrega uma taxa de emoção, mas não deixa de abrigar igualmente uma porção de lógica, razão, bom-senso. Dedução: o Brasil emotivo acolhe também elevado teor de racionalidade, o que significa participação política mais consciente. A cada pleito, registra-se menor número de adeptos contaminados pela síndrome do touro: pensar com o coração e arremeter com a cabeça.
Milhões começam a escolher seu candidato pensando com a cabeça, apesar de nossa mais alta autoridade fazer o contrário, quando nos coloca a pecha de “maricas” e sugere que, ante eventual falta de saliva, o país use “pólvora” para defender a Amazônia. (P.S. Contra quem? Contra a maior potência militar do planeta). Deixemos as cabeçadas toureiras de lado e voltemos ao processo eleitoral. Constata-se, nesta eleição, outro fenômeno que indica o grau de polarização política: a mescla do espaço local/regional com o espaço nacional. As campanhas se desenvolvem sob um roteiro de promessas e compromissos locais, mas é perceptível o manto nacional vestindo as contendas, significando que o voto também será dado para contrariar ou endossar protagonistas que habitam o último andar da pirâmide da política, principalmente o presidente da República. Votar em quem foi indicado ou apoiado por ele faz parte do sistema decisório do eleitor.
Por último, vale lembrar que a escolha significa a construção da base do edifício político, ou a pista de decolagem dos aviões que subirão em outubro de 2022. Vereadores e prefeitos são cabos eleitorais de todos os participantes da política, ajudando a eleger deputados estaduais, federais, senadores e governadores, e estes, por sua vez, formam os vasos comunicantes que animarão as plateias da eleição presidencial. O fato é que o pleito deste 15 de novembro, a se completar com o segundo turno no dia 29 próximo, mesmo insosso, é uma pedra fundamental para construção do Brasil de amanhã. O que resultará das eleições afetará a vida de cada um. Daí a importância de tentar enxergar no candidato de hoje um eixo essencial à engrenagem que fará o Brasil avançar ou retroceder. O voto é um direito. Que deve ser usado como a mais poderosa arma de defesa da cidadania no seio das democracias. Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato _________________________________________________________________________________________________________________ Acesse o blog www.observatoriopolitico.org