A Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca) foi criada em 1984, durante a ditadura militar, sob forte influência nacionalista, com o objetivo anunciado de desenvolver pesquisas minerais na região amazônica, com direitos exclusivos do Brasil nas atividades ligadas à mineração. O estabelecimento da Renca buscava sua preservação para o futuro e salvaguardar uma região estratégica para as grandes empresas brasileiras.
A Renca possui área aproximada de 47.00 Km2, extensão territorial comparada ao estado do Espírito Santo e está localizada em meio à Floresta Amazônica, entre os estados do Pará e do Amapá, sobrepondo duas reservas indígenas além de nove unidades de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). O decreto 9142/17 do governo federal, de 22 de agosto de 2017, extinguiu a Renca e foi anunciado sem que o documento fosse debatido com o Ministério de Meio Ambiente, além de outras burocracias especializadas e principalmente com a população, por meio de suas entidades organizadas, além do fato de que não houve a discussão e a aprovação do projeto em plenário do Congresso Nacional.
O texto do decreto abre a atividade de pesquisa e de mineração da área protegida para setor privado, fundamentalmente, para as grandes corporações internacionais, uma vez que a extinção da Renca já havia sido anunciada cinco meses antes, em março, pelo ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, em evento em Toronto, Canada – Prospectors and Developers Association of Canada (PDAC) – no qual também foi apresentado um pacote de medidas de reformulação do setor de exploração mineral brasileiro, sob o pretexto de estimular o seu desenvolvimento. Em abril deste ano, o Ministério de Minas e Energia publicou no Diário Oficial uma portaria que dispunha títulos minerários dentro da Renca. O Canadá já é antigo consumidor de minerais brasileiros e possui expressivo investimento em extração mineral na região de Carajás. A Renca, além de atrair interesse devido ao ouro, possui grandes reservas de tântalo, minério fundamental para a produção de eletrônicos e materiais cirúrgicos.
O primeiro decreto de extinção da Renca, nº 9.142/17, era pouco preciso quanto à vinculação do setor privado nas futuras atividades mineradoras. Entretanto, o governo enfrentou duras críticas nacionais, ações na Justiça e atraiu publicidade negativa na mídia, principalmente a internacional.
O presidente Michel Temer realizou mudanças no texto anterior e lançou, em 28 de agosto de 2017, um novo decreto, o 9147/17, com mudanças, segundo especialistas, “pra inglês ver”. O decreto mantém a extinção da Renca, ainda que tenha sido revogada a primeira norma do decreto anterior sobre esse conteúdo. Há permissão para a extração mineral exceto onde haja sobreposição parcial com unidades de conservação da natureza ou com terras indígenas, ao menos que seja previsto no plano de manejo da área (BRASIL). Entretanto, ainda que tenha havido essa mudança, é importante ressaltar os impactos negativos que as atividades de mineração carregam em sua “genética”, entre elas: a migração de pessoas em busca de trabalho e renda; atividades de altos impactos ecológicos ocasionados pela movimentação e desmonte pedológicos; abertura de estradas para escoamento de equipamentos, produtos e minérios; poluição e contaminação do solo, das águas superficiais e subterrâneas e do ar; geração de resíduos de toda natureza, principalmente de resíduos químicos, enquadrados como Classe I ??? perigosos, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ABNT – NBR 10.004 (2004), que necessitam de rigoroso controle em todo o seu “ciclo de vida”.
A tragédia vivenciada na região do município de Mariana (MG), ainda ecoa em nossa memória e vem demonstrando que, além de não haver controle adequado às atividades de mineração, no Brasil, a punição para crimes ambientais dificilmente é efetivada e as ações das empresas multinacionais, praticadas por aqui, em geral diferem da forma como as praticam em seu país de origem.
A tragédia de Mariana, ocorrida em 2015, deu-se devido ao rompimento da barragem de rejeitos de mineração, conhecida como barragem do Fundão, da mineradora Samarco, de propriedade das Empresas Vale e da BHP Biliton e foi considerada o maior desastre ambiental da história do país, cobrindo de lama o distrito de Bento Rodrigues e outros vilarejos, matando 19 pessoas, além de ter espalhado rejeitos ao longo de 700 Km até atingir o Rio Doce, sendo carreada por ele mais de 800 Km até chegar a sua foz, no estado do Espirito Santo, poluindo e contaminando uma vasta área costeira. A tragédia de Mariana deixou prejuízos ambientais e econômicos incalculáveis, atingindo cerca de 500.000 pessoas, principalmente 3000 pescadores, que perderam seu sustento.
Após quase dois anos desde o acidente, recentemente, o caso retomou espaço na mídia devido à suspensão da ação que investigava o rompimento da barragem da mineradora Samarco. O processo foi paralisado sob a acusação por parte da defesa de ilegalidade na quebra de sigilo telefônico. Até agora, somente 1% do total das multas fixadas para este gravíssimo desastre foram quitadas. Esse evento é exemplo do que é possível ocorrer quando falta a adequada fiscalização, fixada nos textos legais e normas vigentes, para as atividades de altos riscos potenciais ao meio ambiente.
Por fim, outros eventos semelhantes ao de Mariana, hoje esquecidos pela mídia, ocorreram em várias regiões do país; somente no rio Paraíba do Sul, cujo curso se estende por áreas dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, desde a década de 1980, já houve importantes danos ambientais, ligados às atividades de mineração. Em maio de 1982, a contaminação proveniente da Companhia Paraibuna de metais atingiu as águas do rio Paraibuna, em Juiz de Fora, afluente para do rio Paraíba do Sul, se estendendo até Campos – RJ, no Norte Fluminense e contaminando uma extensão de aproximadamente 300 Km do rio. A água contaminada pelo carreamento, principalmente de cádmio e chumbo, expôs a população aos riscos de contaminação associada a esses metais, inclusive o de câncer; além de deixar sem água, para o consumo, por vários dias, 250 mil pessoas, cerca de dez cidades, e contaminar 18 milhões de litros de água. O governador de Minas Gerais fechou a Companhia Paraibuna de Metais por dez dias.
Já em 2003, houve o vazamento de 1,2 bilhão de litros de água com produtos químicos represados em um antigo reservatório da indústria Cataguazes Papéis, em Minas Gerais, contaminando o rio Pomba, que deságua no rio Paraíba do Sul e foi responsável pela suspensão do abastecimento de água na região e interdição das praias de São João da Barra – RJ, sendo considerado pelo vice-governador e secretário estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento da época, Luiz Paulo Conde, o pior desastre ambiental do estado do Rio de Janeiro. Em 2007, o rompimento do dique de contenção da Mineradora Rio Pomba, Cataguazes, que no ano anterior já havia estado envolvida em outro vazamento, em Miraí (MG), foi responsável pelo vazamento de dois bilhões de litros de lama misturada com dois componentes tóxicos, a bauxita e o sulfato de alumínio, no rio Muriaé, afluente do rio Paraíba do Sul.
Esses quatro desastres ecológicos e ambientais, entre vários outros, ligados às atividades de mineração, no Brasil, servem de exemplo para alertar sobre a vulnerabilidade a que ficaria exposta a região onde se localiza a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca). A extinção desta Reserva, por um simples decreto do governo federal, exibe, em grau máximo, as atitudes autoritárias do governo. Dada a maneira atabalhoada com que se deu o anúncio do decreto, tudo leva a crer que tal pressa visa cumprir agenda que recoloca o país sob a égide das reformas de cunho liberal.
Atitudes como esta podem dar vez a uma serie de impactos negativos ligados ao meio ambiente, à biodiversidade, a recursos hídricos locais, à etnia regional, à partilha justa dos substanciais ganhos econômicos obtidos com essas transações, além da pouca difusão de conhecimento que benefícios feitos para poucos propiciam ao país e à região que abriga esse tipo de empreendimento predatório. Exemplifique-se a desastrosa privatização da Companhia Vale do Rio Doce, cujos detentores são os principais réus ligados aos desastres ecológicos recentes.
Neste decreto, os legítimos atores que deveriam ser consultados sobre o seu conteúdo foram deixados de lado, diga-se: Ministério do Meio Ambiente, da Segurança Nacional, especialistas no tema, a par de representantes da sociedade civil organizada e comunidades locais, os quais são os legítimos herdeiros das riquezas nacionais.Tal ação, na forma como originalmente se pretendia, teve voo curto e enfrentou críticas e ações dos diferentes setores da sociedade que, cada vez mais, não aceitam que decisões de tamanha importância venham à luz através de um decreto, sem o debate necessário e sem o aval, em plenário, do Congresso Nacional.
No dia 28/08/17 o governo voltou atrás em sua decisão, modificando o texto mas insiste em manter a extinção da Renca, porém, garantindo a “entrega” menor porção da reserva para a exploração minerária, sem causar impactos às populações indígenas e às áreas de proteção ambiental da região. Há rumores de que no próprio Congresso Nacional existem grupos que defendem fixar o aumento da área da reserva sujeita a exploração. Não está claro quem pode se habilitar à exploração dos recursos minerais, bem como não se sabe ao certo os riscos a que a região amazônica estará exposta, pois, com a extinção da reserva, provavelmente também sejam extintas suas coordenadas geográficas, favorecendo novas aventuras indiscriminadas na floresta. O governo não explica como as proezas do novo texto, apresentado após o seu estratégico recuo, serão garantidas.
O certo é que, mesmo dando um passo atrás, o governo federal vem conseguindo seu intento e, se tudo ficar como está, com todas as incertezas apontadas, as portas estarão abertas para que um futuro governo, quem sabe, com o mesmo viés liberal do atual, dê continuidade a esta iniciativa, pois o que esta e as outras tragédias evidenciam é qual o modelo de desenvolvimento que se deseja para o futuro e qual o papel que o Brasil desempenhará no cenário internacional. O governo do Canadá, oficialmente, ouviu a história em março de 2017. Certamente outros “Canadás” também já a conheciam e vêm ajudando a desenhar nossa história há muito tempo. Após a revogação do decreto, o presidente do Brasil viajou para a China, a qual vem demonstrando interesse expressivo na compra de terras brasileiras, para participar da cúpula do BRICS.
Wellington Cyro de Almeida Leite é professor aposentado na área de Saneamento Ambiental da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá – UNESP. Foi Consultor da ONU/PNUD, no Projeto BRA/92/017 – Gestão e Tecnologias de Tratamento de Resíduos Sólidos. Atualmente é Superintendente do Departamento Autônomo de Água e Esgotos( DAAE) do município de Araraquara.
Maria Luísa Telarolli é mestranda do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) e pesquisadora do GEICD (FCLar), da REPRI (Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo) e do Observatório de Regionalismo.