Uma decisão judicial pode salvar muitas vidas. E em um momento de crise nos sistemas de saúde como o qual o Brasil enfrenta hoje, por conta da pandemia do novo coronavírus, algumas decisões têm o poder de mudança ainda maior. No dia 11 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou inconstitucional a determinação do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibia os homens adultos homossexuais de doar sangue, caso tivessem praticado relações sexuais com mais de um parceiro nos últimos 12 meses. O julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5.543 fez valer princípios fundamentais da Constituição Federal, que condena a discriminação e o preconceito, por qualquer motivo.

Em artigo, a doutora e mestre em Direito Civil Paula Francesconi Pereira, advogada do Hospital Icaraí que trabalha há 16 anos em direito médico, e o doutor e mestre em Direito Civil Vitor Almeida, explicam que a decisão do STF, embora tomada em um momento oportuno em que se percebe baixo estoque de bolsas de sangue nos hemocentros frente à crise, não é pontual e utilitarista, pois representa um ganho real para a população brasileira.

“Em tempos de escassez em razão da crise sanitária, não se deve desperdiçar os atos de solidariedade em nome de preconceitos arraigado. Mais do que nunca, em períodos de excepcionalidade, a coexistência fraternal nos desafia a proteger o direito do outro, especialmente dos vulneráveis, sobretudo quando em benefício de toda a coletividade”, afirmam no trabalho Doação de sangue, solidariedade social e orientação sexual: repercussões do julgamento da ADI 5.543 em tempos de pandemia. “O guardião da Constituição exerceu sua importante missão de efetivar o direito à igualdade e a não discriminação em razão da sexualidade”, escrevem.

Os autores também consideram de caráter conservador as indicações do Ministério da Saúde e da Anvisa, pois levavam em conta apenas a orientação sexual como fator de risco a contaminações do sangue, e não as possibilidades de comportamento e precaução, se configurando como preconceito. Além disso, a proibição fere o princípio da autonomia ao não permitir o direito sobre o próprio corpo. Para eles, a antiga proibição não mais tinha base por não acompanhar o desenvolvimento da medicina, que dispõe de cada vez mais capacidade de testar infecções sanguíneas com celeridade.

“Tal restrição estava calcada em fundamento estigmatizante e discriminatório em relação à orientação sexual, e não em critérios científicos razoáveis, o que de todo deve ser evitado por violar não só princípios de ordem constitucional, mas também os princípios bioéticos erroneamente interpretados pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA”, afirmam.

Sobre o HIV, vírus causador da AIDS, uma das alegadas preocupações do Ministério da Saúde a respeito dos homens homossexuais, os professores também esclarecem que é necessário afastar o conceito de “grupo de risco”, baseado até então apenas na escolha sexual de cada um. Seria fundamental considerar, então, os coportamentos de risco, uma vez que existem formas de prevenção do vírus com diferentes métodos.

“É a prática sexual individual desprotegida que determina a possibilidade de contrair o vírus e não sua orientação sexual, ligada à identidade pessoal do indivíduo, emanação direta de sua dignidade humana. Tal direito, de natureza personalíssima, promove a inclusão social e permite o respeito à diferença”, concluem.

A doação de sangue, com todas as suas regulamentações, está amparada na Constituição Federal e no Código Civil, que atentam que a prática não causa danos à saúde do doador. A discussão sobre a doação de sangue por homens homossexuais, já antiga no STF, teve decisão favorável por maioria de votos, que seguiram o voto do relator ministro Luiz Edson Fachin, proferido em outubro de 2017. Participaram como partes interessadas no processo especialistas da comunidade científica e representantes de movimentos sociais a favor da igualdade.