Não há nenhuma beleza na miséria. A frase é do angolano José Eduardo Agualusa e cai bem para o momento.  A fome que ataca milhões de seres humanos no planeta, principalmente no continente africano, é um espetáculo horripilante. As massas sofridas que habitam as áreas de lama e esgoto, nas margens das grandes e médias cidades do nosso país, mais de 50 milhões de pessoas, formam pelotões avançados de sofrimento e dor. Os 15 milhões de brasileiros desempregados habitam o universo da desesperança. A miséria é um cancro que se espalha pelo corpo da Humanidade, devastando seres e a natureza, corroendo os valores que, certo dia, não faz tempo, semeávamos com amor no jardim dos nossos corações: a amizade, a solidariedade, a harmonia, o respeito ao outro, o carinho, o companheirismo, a humildade.

Hoje, as coisas estão ficando feias. Até os monumentos que tanto admirávamos. Os belos cartões postais passam rápidos por nosso olhar, perdendo o encanto e a magia que nos fazia sonhar. Que adianta contemplar o Pão de Açúcar dentro de um cercado de miséria, violência e morte? Que adianta tecer loas à grandeza e à beleza da floresta amazônica, se ali, o que vemos são imensos espaços de fogo e destruição? Para onde se contemple, nossa vista é levada, mesmo sem querer, para as tochas da destruição, geralmente acesas pela ambição humana ou pela cegueira que fecha as portas do bom senso.

A miséria habita tudo e ameaça chegar a cada um. Não se conforma com a territorialidade física, pedaços da natureza dividida, mas inicia sua depredação por mentes e corações. São sentimentos de ódio e vingança, que tomam o lugar da bondade, são maquinações urdidas com astúcia para vencer disposições e vontades adversárias, são emboscadas tramadas para subjugar oponentes nesse jogo sujo e maldoso que faz girar a humanidade em uma arena de lutas e mortandade. A Humanidade dá adeus aos princípios morais e éticos que, por séculos, edificaram os pilares de seu pensamento.

O respeito às leis da ciência agora ganha mais uma expressão: negacionismo. O prazer de muitos que detêm o poder é negar, é tentar abolir os avanços e as descobertas que os vários campos científicos conseguiram, graças aos esforços de pessoas geniais, gente que cultivava o prazer de fazer o bem da coletividade. Quantas vidas foram salvas com as descobertas das vacinas e dos remédios. Quanto a Humanidade ganhou com o passo a passo de seus criadores e inventores. Hoje, negar todo esse aparato do bem transformou-se, até em negócio, envolvendo, vejam só, pessoas que até cultivam saber e conhecimento.

Ganhar dinheiro, fazer fortuna, até com a miséria dos outros, virou o leit motiv desta terceira década do século. Você teve um bom dia? A pergunta é mais para saber se o interlocutor fez algum negócio, avançou em seus empreendimentos, entrou dinheiro no cofre. E menos se a paz guiou os passos da pessoa, se os afazeres foram todos cumpridos, sob a certeza de que esses alimentos do espírito nos trazem bons sonhos e um despertar com disposição para a labuta.

A palavra perde força. Nossos pais faziam seus negócios, muitas vezes escudados sob a certeza de que bastava a palavra para assumir um compromisso. Hoje, o negócio só vale se for validado em cartório, com firma reconhecida, carimbos e testemunhas. Tempos insólitos. Tempos estranhos. Tempos de incertezas. De muita conversa que se perde pelo excesso de expressões jogadas ao vento. Tempos em que até a morte se torna um ato banal. Hoje, morreram mil, ontem, 800. Passamos o patamar de 20 milhões de contaminados. Antigamente era assim: fulano morreu. Morreu? Não diga. Era uma tristeza imensa com sentimento de dor e perda.

A Humanidade cumpre seu roteiro. Escritórios e fábricas trabalham arduamente, milhões entopem trens e ônibus para chegar ao trabalho, lugares de comer e beber, restaurantes e bares, ficam abarrotados, principalmente nesse ciclo de domínio da pandemia do coronavírus 19. Mas não há como negar que muitas coisas mudaram. E a miséria entra em novos habitats. Antes, referíamo-nos ao campo físico para tratar do feio, do bonito, do belo e do horrível. Hoje, a feiura assumiu novos contornos.

Sob o verso de Manuel Bandeira: “que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco.”

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato