“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.” A frase do velho Karl Marx tornou-se um resistente refrão para ancorar textos, análises e comentários de palestrantes e analistas políticos. Muitos não concordam com a expressão, preferindo o conhecido pensamento de Heráclito de Éfeso, desenvolvido há mais de 2.500 anos: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”. A razão: tudo se transforma de maneira constante e permanente. Na segunda tentativa, o homem está modificado e as águas não serão as mesmas.
O que pode se registrar, em determinado ciclo, principalmente na esfera da política, é a ocorrência de um fato, um incidente, uma confissão de cunho ideológico que conserva semelhanças com casos ou ditos do passado. Exemplo que sobe à tona: a revolta da vacina.
O caso ocorreu em meados de 1904, quando 1.800 internados no hospital São Sebastião, no RJ, levantaram o ânimo da população pobre para evitar tomar a vacina contra a varíola, produzida na época com o líquido de pústulas de vacas doentes. O uso para crianças tornou-se obrigatório em 1837 e para adultos em 1846. Oswaldo Cruz, nosso cientista, teve de lutar para motivar o governo a enviar ao Congresso o projeto de obrigatoriedade.
E o que estava também por trás da revolta? Questões políticas. Arrumava-se um pretexto para as forças políticas (principalmente monarquistas, militares, republicanos radicais e operários) forçarem a deposição do presidente Rodrigues Alves. Dito isto, pulemos para os dias de hoje.
A revolta contra a obrigatoriedade da vacina, patrocinada pelo presidente da República, mais parece uma jogada no tabuleiro do xadrez político. A conotação é clara: trata-se de um remédio chinês, ou em tradução que agrada as bases bolsonaristas, é uma “vacina comunista”. Se chegarmos a esmiuçar o argumento, emergirá o complô do QAnon, aquela maluquice difundida nos EUA, que embala o pacote de domínio comunista: pedofilia, tráfico de crianças e outras coisas estapafúrdias.
O que diz a lógica em um mundo que enfrenta a pandemia? Que vacina não tem cor ideológica e qualquer uma das 130 vacinas que estão sendo testadas pode ser aplicada, contanto que seja eficaz e aprovada pelos organismos de controle dos países. É incrível que alguns políticos e governantes (e até astronautas), vestindo-se de médicos, continuem a receitar a hidroxicloroquina e até vermífugos, quando organismos da ciência mundial batem na tecla: essas drogas não são eficazes contra o Covid-19.
O fato é que o negacionismo, que tanto resistiu no passado, tenta reaparecer sob o véu da ignorância. Mas, agora, em nosso planeta a ciência é bem mais avançada que no passado. Existe um núcleo forte no governo que tenta puxar o cabo de guerra para os tempos de Galileu Galilei. Condenado à prisão por defender a tese de Copérnico de que a terra não ficava no centro do universo, e sim orbitava em torno do sol, Galileu foi obrigado a negar sua pregação e a viver confinado em prisão domiciliar.
Até que, em 31 de outubro de 1992, o papa João Paulo II reconheceu os enganos cometidos pelo tribunal eclesiástico que condenou Galileu à prisão. Essa revisão de posicionamento, portanto, ocorreu 350 anos após a morte do cientista italiano.
Os olhos dos negacionistas, a partir do presidente Jair, parecem tapados. Para eles, o isolamento social é besteira. Não enxergam uma segunda onda do vírus na Europa, espalhando-se pela Itália, França, Inglaterra e Alemanha, entre outros. Nos EUA, a maior democracia do planeta, os negacionistas também espalham versões, mas morrem às pencas.
Trump, que comanda a maior democracia do mundo, e Bolsonaro, que não perde a oportunidade de fazer loas ao magnata de uma cadeia de negócios, eles e seus assessores foram pegos pelo bicho. Mas se acham super-heróis. E parcela de seu eleitorado também assim se considera. Há como mudar a mente de um radical empedernido? Como fazê-los acreditar que, se uma parcela da população não tomar a vacina, poderá contaminar outras pessoas? Como provar a eles que a ciência não tem ideologia?
Governantes, governem para todos. Não apenas para apoiadores e simpatizantes. Sejam justos e magnânimos. Querem saber o que é isso? Eis a explicação de Platão: “o homem justo é aquele cuja alma racional impõe à alma desejante (prazeres e leviandade) a virtude da temperança e à alma colérica, a virtude da coragem, que deve controlar a raiva.” Eleitores radicais de qualquer lado: aceitem o jogo dos contrários, que faz parte da democracia.
Tentem aliviar o verbo cheio de ódio, a cara enfezada, a atitude de quem está sempre chamando para a briga. Levantem a bandeira branca da Paz.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato