Joias e ética
Para alguém que tem como missão zelar pelo patrimônio público, as controvérsias envolvendo o destino das joias recebidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro suscitam reflexões sobre as leis e as condutas que os agentes do Estado deveriam, em princípio, observar no exercício de suas funções.
Se, do ponto de vista legal, é expressamente vedado que servidores federais aceitem presentes de qualquer espécie, em outros casos a legislação se mostra mais ambígua e aberta a interpretações.
O primeiro diploma a tratar especificamente do patrimônio pessoal dos presidentes da República foi sancionado somente em 1991 –a lei 8.394, que dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dessas autoridades.
“Os documentos que constituem o acervo presidencial privado são, na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”, reza o artigo 2°.
Em 2002, a norma foi regulamentada por meio do decreto 4.344. Institui-se então que deveriam ser públicos somente “os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes” e eventos similares.
Embora seja claro que ambos os diplomas versam sobre a produção documental dos presidentes, a ausência de um dispositivo legal específico abriu margem para a interpretação de que apenas presentes recebidos em tais situações deveriam ser incorporadas ao patrimônio público.
Na prática, porém, constatou-se um estado de coisas ainda mais permissivo: eram os próprios presidentes e assessores que definiam, sem critérios claros, aquilo que ao término do mandato ficaria sob domínio público e aquilo que seria integrado ao acervo privado.
É o que concluiu a análise conduzida pelo Tribunal de Contas da União em 2016. Segundo o acórdão, de 2002 a 2016 os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff receberam pouco mais de mil itens de chefes de estado ou de governo.
Dos 568 presentes recebidos por Lula e não classificados como de cunho pessoal, apenas nove haviam sido incorporados ao patrimônio da União. No caso de Dilma, 144 presentes se enquadravam nessa categoria, mas somente seis foram integrados ao acervo público.
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A decisão do TCU também fixou a interpretação da lei de 1991 e do decreto de 2002 à luz dos princípios da moralidade, legitimidade e razoabilidade. Segundo o tribunal, qualquer tipo de presente –e não apenas documentos— constitui um bem público, excluídos os itens de natureza perecível e personalíssima, como perfumes e roupas.
De modo premonitório, o relator do caso, ministro Walton Alencar, chegou até a imaginar, como exemplo de falta de razoabilidade, a situação em que um presidente tomasse para si uma esmeralda recebida de outro chefe de estado.
Neste ano, o TCU voltou a enfrentar questão similar, a propósito de relógios avaliados em dezenas de milhares de reais recebidos por membros de uma comitiva presidencial que visitou o Catar em 2019. Embora tenha avaliado a questão por outro prisma –o de leis sobre conflitos de interesse, bem como do Código de Ética da Alta Administração Federal– a conclusão do tribunal foi a mesma do acórdão de 2016.
Para além da tecnicalidade das leis, no entanto, há aspectos da conduta dos integrantes das altas esferas da República que não deveriam depender de qualquer previsão legal.
Resta óbvio e evidente que tanto Jair Bolsonaro quanto seus ministros foram presenteados apenas em razão de sua qualidade de representantes do Estado brasileiro. Assim, ao tomarem para si os regalos recebidos, eles adotaram uma conduta não só incompatível com a ética que se espera de tais autoridades. Benesses tão luxuosas tendem também a despertar suspeitas sobre as intenções daqueles que as ofertam –sobretudo quando se sabe que provêm de países com fortes traços autocráticos.
Há casos em que o bom senso e o espírito republicano deveriam bastar.
Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
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