Por Willian Souza, ex-Presidente da Câmara de Vereadores de Sumaré.
Há uma década, o feminicídio foi tipificado no Código Penal brasileiro. A mudança representou uma vitória histórica dos movimentos de mulheres e uma resposta tardia do Estado a um problema que sempre esteve diante de nossos olhos: o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Dez anos depois, os números mostram que, apesar da lei, continuamos fracassando como sociedade.
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Na Região Metropolitana de Campinas, 133 mulheres foram mortas desde 2015, média superior a uma por mês. Sumaré, tristemente, ocupa o segundo lugar nesse ranking, tornando-se parte de uma ferida que sangra não apenas na nossa região, mas em todo o país. Esses dados, extraídos de pesquisas baseadas em informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, são mais do que estatísticas — ilustram como a sociedade tem naturalizado a barbárie.
A resposta imediata costuma ser o clamor por punições mais severas. Não se trata de minimizar a importância da responsabilização legal, e o feminicídio precisa ser exemplarmente punido. No entanto, imaginar que a repressão penal, sozinha, será capaz de estancar a epidemia é um equívoco. O crime nasce antes do gatilho, antes da faca, antes do empurrão e das agressões verbais. Ele germina no silêncio das piadas machistas, nas relações desiguais, nas estruturas familiares autoritárias, na omissão cúmplice de vizinhos, colegas e instituições.
O machismo é o vírus que contamina gerações, disfarçado de normalidade. E enquanto o combate a esse vírus não for incorporado ao cotidiano das escolas, das igrejas, das empresas, dos lares e de todos os círculos sociais, estaremos sempre lidando apenas com as trágicas consequências, nunca com as causas. É por isso que a educação precisa ocupar o centro dessa discussão.
Educar para a igualdade é formar meninos que reconheçam o valor das meninas como iguais, que aprendam que respeito não é concessão, mas princípio. É garantir que o currículo escolar inclua debates sobre gênero, empatia e cidadania, mesmo quando isso contraria setores conservadores que insistem em confundir educação com ideologia. O machismo é uma ideologia de morte, e não há neutralidade possível diante disso.
Mas a educação, por si só, também não basta se a mulher continuar sendo minoria nos espaços onde as decisões são tomadas — e se a desigualdade material persistir como forma de aprisionamento. O ciclo da violência é mantido, em grande parte, pela dependência econômica. A violência patrimonial — aquela que retira da mulher o controle sobre seus bens, seu salário, sua autonomia financeira — é uma das mais cruéis e silenciosas expressões do machismo. Milhares de mulheres permanecem em relações abusivas porque não têm como sustentar a si mesmas e aos filhos.
No mercado de trabalho, essa desigualdade se reproduz: para a mesma função, as mulheres seguem ganhando menos que os homens, são subrepresentadas em cargos de chefia e ainda enfrentam discriminação velada em contratações e promoções. Uma sociedade que paga menos a quem produz o mesmo não apenas desvaloriza o trabalho feminino — ela perpetua a submissão e alimenta o terreno onde a violência se fortalece. Combater o feminicídio, portanto, também é lutar por igualdade econômica, por oportunidades reais e pela autonomia das mulheres sobre suas próprias vidas.
O combate ao feminicídio é, portanto, uma disputa política e moral. Quando as mulheres não estão representadas nos espaços de poder, a formulação de políticas públicas se empobrece e a sociedade se torna mais cega à sua própria realidade. Valorizar a presença feminina no debate público não é um gesto simbólico — é uma medida de sobrevivência coletiva.
Precisamos falar também de políticas de proteção. Casas-abrigo, delegacias especializadas, redes de acolhimento psicológico e jurídico, canais de denúncia acessíveis e eficazes. São instrumentos que salvam vidas, mas que seguem sub financiados e, muitas vezes, invisíveis. O Estado deve ser o primeiro a proteger, não o último a lamentar.
O Brasil vive uma crise silenciosa.
Todos os dias, mulheres são assassinadas por homens que se acreditam donos de seus corpos e destinos. Isso não é acaso, nem fatalidade: é resultado de uma cultura que ainda legitima a violência como forma de poder. Por isso, o enfrentamento ao feminicídio não é apenas um dever das autoridades — é um compromisso moral de toda a sociedade.
Chegou a hora de firmarmos um pacto social que seja amplo, profundo e inadiável para interromper essa sequência de tragédias. Um pacto que envolva governos, escolas, igrejas, empresas, meios de comunicação e cada cidadão. Um pacto que comece pela linguagem e chegue às leis; que comece na casa e se estenda às ruas.
Se a cada mulher morta um pedaço do país morre junto, o contrário também é verdadeiro: cada mulher que vive livre, respeitada e plena devolve ao Brasil um pouco da humanidade que perdemos para a brutalidade. É essa reconstrução moral que precisamos iniciar — e já estamos muito atrasados.
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