Embora a gente ensine para as crianças aquela infame musiquinha sobre o corpo que diz que temos cabeça, ombro, joelho e pé, sabemos que o ser humano é muito mais do que isso. Nosso corpo é um grande sistema, cheio de detalhes, sensações, coisas curiosas, reações ao mundo. O corpo da criança não é diferente e é por meio dele que ela experimenta o mundo e se relaciona com ele. Além de cabeça, ombro, joelho e pé, a criança tem barriga, olhar muito atento e curioso, uma boca que funciona incansavelmente na fase dos porquês, mãos que querem tatear o universo, se possível. Com esse corpo, ela tem emoções, uma história de vida, uma pele com capacidade reagir e produzir de sensações, necessidade de carinho e afeto, curiosidades sobre si e sobre o outro, sente prazer e desprazer, pergunta sobre o mundo, o universo e até de onde vêm os bebês. E é assim que a sexualidade de apresenta na infância.
A sexualidade em si é uma força viva do indivíduo, um meio de expressão dos afetos, uma maneira de cada um se descobrir, bem como descobrir os outros. Ela se apresenta de diferentes formas, transformando-se ao longo dos anos. Não está conectada somente aos órgãos genitais, nem tampouco à relação sexual, mas compreende uma série de processos psicológicos, físicos e sociais de sensações, sentimentos, trocas afetivas, necessidade de carinho e contato e necessidade de aceitação. Transcendendo o aspecto individual, o conceito de sexualidade não se completa dissociado de todas as suas dimensões sociais, políticas, econômicas, históricas, culturais e até das relações de poder que se estabelecem a partir desses corpos sexuados.
Somo seres sexuados desde o nascimento até a morte. Privar uma criança do exercício de sua sexualidade e do acesso à informação é violar um direito necessário ao seu desenvolvimento e até à sua proteção. Esse direito, quando não é respeitado, coloca em risco sua saúde, qualidade de vida e integridade física e psicológica, afinal, reprimir a sexualidade da criança é reprimir seu corpo, que é o ponto de partida das suas descobertas, da sua relação consigo mesma e com o outro e da formação da sua personalidade.
Sendo assim, a maneira como a sexualidade se apresenta na infância está inserida em todo o processo de desenvolvimento global da criança. Acompanha o desenvolvimento motor, psíquico, afetivo, cognitivo. Tipicamente, cada fase desse movimento, que podemos chamar de desenvolvimento psicossexual, corresponde a algumas idades e a sexualidade se manifesta de maneiras diferentes perante situações de descoberta, curiosidade e experimentação. Em certa faixa etária, é comum que as crianças experimentem o mundo e passem a reproduzir papéis em suas brincadeiras: assim como elas brincam de astronauta, soldado e princesa, pode ser que elas passem a testar seus afetos para entender suas emoções. A menina pode brincar de ser presidenta, caminhoneira ou que ela e um colega são os pais de sua boneca; o menino pode fazer de conta que é um bailarino dançando, um cozinheiro famoso ou que é o pai da família colocando uma gravata. Às vezes, quando desenvolvem uma preferência, afeto e apreço por algum colega, tendem até a chamá-lo de namorado ou namorada, numa tentativa de entender e nomear as emoções. Nesse caso, sim, a criança brinca de namorar, de casar, de ter filhos, de trabalhar, sem conotação erótica alguma.
É importante que os adultos aprendam a diferenciar as brincadeiras típicas dessas fases da vida do que realmente significa erotização precoce. É preciso tomar cuidado para que a interpretação dos adultos sobre as atividades infantis que, na maioria das vezes, não possuem teor malicioso nem tampouco erotizado, não vire um problema ou motivo de repreensões severas.
Às vezes, as pessoas responsáveis pelas crianças interpretam esse interesse pelo outro ou a preferência por algum amigo ou amiga, como uma relação romântica, erótica. Isso é pura projeção adulta sobre a atividade infantil. A criança só está aprendendo a selecionar suas amizades e entender suas relações. A responsabilidade dos adultos é de ensinar as crianças a darem nome para esses sentimentos, estabelecendo os limites e as diferenças entre as relações de amizade saudáveis na infância e as relações íntimas-afetivas reservadas ao universo adulto.
Durante as conversas, é importante que os adultos não ridicularizem as crianças, deixando bem claro que compreendem e validam seus sentimentos. Além disso, nesse diálogo as famílias e professoras(es) precisam orientar as crianças que namoro, casamento, beijo na boca e outros carinhos mais íntimos são atividades do universo adolescente ou adulto e que é preciso maturidade e responsabilidade para isso. Então, é possível amar o(a) coleguinha, mas que esse amor, que também pode ser chamado de amizade, pode ser expresso com um abraço, companhia, o compartilhamento de uma brincadeira, de um lanche, de um passeio ou de uma leitura.
Entendido isso, é hora de pensarmos sobre a erotização precoce. Erotização precoce é a exposição prematura de conteúdos e estímulos a indivíduos que ainda não têm maturidade suficiente para compreendê-los e elaborá-los: incentivar meninas a se vestirem de forma adultizada usando maquiagem, sapato de salto, dançando de forma sensualizada, permitir que a criança assista novelas e programas com conteúdo inadequado à faixa etária e com cenas de teor erótico, expor meninos ou meninas à pornografia, deixar de mediar o acesso das crianças à tecnologia – que é uma ótima ferramenta de aprendizado e lazer quando bem utilizada – mas que pode se tornar um ambiente prejudicial de fácil acesso à pornografia quando regras não são estabelecidas e há carência do acompanhamento de um adulto.
Por fim, em uma cultura pautada pelo machismo, é ele que ocupa papel central em se tratando de erotização precoce. Enquanto as meninas são frequentemente incentivadas a se vestirem de forma sensual e adultizada, os meninos são incentivados a falarem sobre suas namoradas – lembrando que esse termo sempre aparece no plural – como uma forma de afirmarem constantemente a sua masculinidade.
Masculinidade se refere aos valores do que significa ser menino e homem para a sociedade. A masculinidade vigente cobra que meninos sejam fortes, corajosos, competitivos, controladores e mostrem sua virilidade de forma pública e incisiva. As consequências são desastrosas: sabemos que esse tipo de masculinidade está na base de comportamentos abusivos e violentos. Assim, erotização precoce na educação do menino pode ser percebida na exigência para que ele demonstre essa virilidade, no incentivo para que ele consuma pornografia, e na cobrança de que prove “ser homem” iniciando a vida sexual por pressão do grupo ou de outros homens de sua convivência. Essa masculinidade rígida vigente também coloca os meninos em situação de vulnerabilidade perante a violência sexual: é notável a subnotificação dos casos de abuso sexual envolvendo crianças do sexo masculino. Isso acontece porque há uma preocupação menor em orientar os meninos quanto aos perigos da violência sexual, ao mesmo tempo que, em casos nos quais eles são abusados por mulheres mais velhas, isso não é visto como um problema, mas como sorte ou privilégio.
É tarefa de todas e todos nós garantirmos uma infância protegida, seja como profissionais, cidadãos ou como família. Para isso, diálogo constante, educação sexual de qualidade, acompanhamento das atividades diárias das crianças, a atenção às brincadeiras saudáveis e àquilo que a criança consome, além de uma educação não violenta, são essenciais. Criança não namora, mas quem deve ensiná-la isso são os adultos responsáveis.
*Caroline Arcari é fundadora da Editora Caqui, pedagoga e mestra em Educação Sexual pela UNESP. Pesquisadora na área de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, é escritora do best seller PIPO E FIFI: ensinando proteção contra violência sexual. Sua atuação, suas obras e seus projetos já foram premiados pela UNICEF, FUNDAÇÃO ABRINQ, SAVE THE CHILDREN. Além disso, PIPO E FIFI recebeu o prêmio internacional de melhor material didático de prevenção à violência sexual da Universidade do Minho, em Portugal. Em 2014, essa mesma obra recebeu o prêmio de Direitos Humanos Neide Castanha. Em 2016, a mesma obra foi contemplada com a medalha Zilda Arns, cedida para iniciativas de cuidados com a primeira infância. Além do premiado livro Pipo e Fifi: proteção contra violência sexual, é autora do Pipo e Fifi para bebês, Pipo e Fifi: o que é privacidade?, Como falar com as crianças sobre Nudez?, Gogô: de onde vêm os bebês?, Que legal o abraço de Cacau, Joaqui em: sentir raiva é ruim?, Leleco, Pele e Quem disse?
Sobre Editora Caqui
Criada e movida por um grupo essencialmente composto por mulheres, a Editora Caqui é um negócio social. Sua missão é publicar livros e produzir recursos educativos com temáticas de educação sexual, feminismos, masculinidades positivas e alternativas, igualdade de gênero, educação não-machista, antirracismo e prevenção contra as violências sexuais.
As autoras acreditam que a informação de qualidade relacionada a esses assuntos é um direito de todas as pessoas, desde a primeira infância. Sendo assim, os conteúdos estão alinhados à legislação brasileira que protege crianças e adolescentes. A editora publica livros para transformar, afinal, a literatura é essencial para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e plural.